terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Sailing away from the safe harbor

"Twenty years from now you will be more disappointed by the things that you didn't do than by the ones you did. So throw off the bowlines. Sail away from the safe harbor. Catch the trade winds in your sails. Explore. Dream. Discover."

Mark Twain




segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Vê lá se és mais preciso

Acho piada como os teóricos abertamente se criticam uns aos outros. Escrevem frases que os imagino a dizer, sentados em cadeiras de plástico branco, num café, com um dos braços apoiados no encosto da cadeira, o pé esquerdo apoiado perto do joelho direito e um ar de desprezo teórico. Ar de quem há muito tempo passou para lá dos pensamentos diários sobre compras no supermercado, cieiro nos lábios ou pés molhados.

When Richmond turns to prescriptions, however, he offers little more by way of detail than either Duffield or Pugh. Emancipatory peacebuilding, he says, would focus more on ‘social welfare and justice’ and embrace the ethic of ‘human security’. More precision would be welcome.

Roland Paris, "Saving Liberal Peacebuilding" (2010)

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Juntar letras e pouco mais

Aprendemos a ler ao mesmo tempo. Juntámos as primeiras letras exactamente nos mesmos dias. Crescemos juntas durante um tempo, estudámos nos mesmos sítios. Um dia eu decidi continuar a juntar letras. Ela decidiu juntar números. Desde então que os junta. E eu, desde então, junto pouco mais que letras. Hoje, mais de duas décadas depois soube que ela ganha oito vezes mais do que eu. Não é a primeira. Mas há dias, como o de hoje, em que páro e penso: conseguirei algum dia vir a juntar algo mais? Ao fim do dia, a resposta que dei a mim mesma não foi a melhor. Resta-me apenas a decisão que tomei quando perdi os dentes de leite: juntar letras.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Doce gestão de conflitos

Foi no fundo das cozinhas de um hotel no Luxemburgo que escrevi partes do meu segundo trabalho do mestrado. Com o título - A gestão de conflitos semeia conflitos futuros - tentei no meu ensaio sustentar a ideia de que a gestão superficial de um conflito, quando limitada a conversas diplomáticas sem envolver as pessoas 'não-estatais', nunca poderá resolver um conflito nas suas raízes. Tomando como exemplo os limites de acção da missão das Nações Unidas em Caxemira ou a inacção perante o genocídio no Ruanda, definem-se críticas às abordagens internacionais. E questiona-se: a maior limitação era a 'nova natureza' da guerra ou o tipo de abordagem trazida da Guerra Fria? Os conflitos foram designados como intractáveis pela sua natureza ou pela ausência de uma abordagem directa às suas origens? O fim da Guerra Fria e as novas abordagens a partir dos anos 90 também não se revelariam a solução, ainda que reconhecem uma maior relevância aos indivíduos, mas caindo na tendência de directamente os considerar cidadãos. Abordagens pré-determinadas, de imposição de uma democracia e liberalização do mercado como soluções para qualquer conflito, também não resultaram. Se a gestão de conflitos da Guerra Fria não trouxe paz, as abordagens de resolução de conflitos através da imposição de valores liberais também podem semear futuros conflitos. Agora soube que os cinco mil caracteres que escrevi tiveram um bom resultado, mesmo escritos entre esperas nos aeroportos, viagens de avião, insónias por cansaço extremo ou ao mesmo tempo que pintava desenhos com uma pequena luxemburguesa (que me recompensava com rebuçados). Tiro uma conclusão: dificilmente conhecemos os nossos limites até os testarmos.




terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Faço de tudo para que o tempo passe devagar.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Voltei a sentir os dedos dos pés

A solução para se gostar mais de Portugal e dar mais valor a tudo o que nos rodeia é sair daqui por um tempo. Isso não significa que não nos tornemos mais lúcidos quanto aos enormes defeitos que existem cá. Passamos a saber definir as falhas que já sentíamos enquanto ainda não sabíamos defini-las. E passamos a saber quais são as soluções, algo que se pode revelar frustrante quando nos apercebemos de quão distantes, por cá, ainda estão essas soluções. Mas sair de Portugal é apagar a tendência de que todo o resto é melhor, de que todos os outros são melhores. É passar a ter um termo de comparação que nos permite fazer uma escolha consciente: voltar ou não voltar. Para quem volta, ainda que temporariamente, até os dias de chuva que durante anos tinham uma tremenda influência no estado de humor passaram a ser dias simpáticos. Sentir as pontas dos dedos das mãos e os dedos dos pés durante vinte e quatro horas é uma felicidade. A luz, ainda que em dia de nuvens, é uma dádiva. E se não tivesse conhecido chuva fria, nunca viria a saber que a nossa é quente.



sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Leuchars-Londres: doze horas de observação do mundo escocês

Escolhi subir a rampa e arrastar a minha mala, em vez de agarrar nela e subir as escadas. Tinha apanhado o autocarro com tempo suficiente para que não precisasse de correr para o comboio. De coração ao largo, depois de ter visto ser cancelado o comboio que na quarta-feira me tiraria de St Andrews e me poria em Londres às 7h30m da manhã de ontem, tentei achar que o melhor era não pensar em nada. Pedido o reembolso e comprado novo bilhete, estava agora a caminho do que achava ser uma viagem directa, de cinco horas, para Londres.

Enquanto me aproximava da estação escocesa de Leuchars, apercebia-me lentamente de que não havia ninguém. Junto a um balcão com chocolates para venda, estava o único funcionário da Scotrail (caminhos-de-ferro escoceses). Diga-se que esta é uma pequena estação, perdida no meio de campos de cultivo, totalmente planos e a perder de vista. A estação apenas tem movimento devido aos estudantes de cascos que ali se dirigem por ser a estação de comboios próxima. O solitário funcionário dirigiu-me a palavra no preciso momento em que eu parei as duas rodas da minha mala e levantei a cabeça para um velho e enorme televisor, de ecrã azul e letras amarelas, pendurado no tecto da plataforma. Ainda que muito pouco moderno ou simpático, consegui claramente ler a palavra: ‘cancelled’. Suspirei e ouvi-o dizer: ‘o próximo para Edimburgo sai às 12h30m’. Preferi não ver que horas ainda eram. E como nunca antes, aceitei ali o meu destino: esperar. Não era algo totalmente surpreendente.

Dois meses e meio na Escócia, duas semanas de neve e temperaturas dez graus abaixo de zero já me tinham feito perceber quão difícil é movimentarmo-nos neste país durante um rigoroso, e inesperadamente precoce, Inverno. Não pus a hipótese de voltar a casa. Agradeci e dirigi-me à máquina dos bilhetes, onde teria de os imprimir. Perante a inexistência de imagem no ecrã, foi fácil perceber que não funcionava e, sem pensar, saiu-me um ‘aqui nada funciona’. Por sinal, o rapaz sorriu e disse que me imprimia os bilhetes. Não havia mais ninguém na estação para além dele, no seu guichet. Ouvia-se apenas o motor de uma máquina de venda de batatas fritas e bebidas frias, o que é muito conveniente quando se está numa estação perdida, rodeada de neve e onde aquilo de que mais distância se quer é o frio. O silêncio, pouco característico de uma estação de comboios, era apenas quebrado lá fora pela música que saía do balcão de chocolates que, viria a descobrir, ser mais do que apenas um balcão de chocolates. Recebi os bilhetes e decidi que a minha espera seria feita num dos dois bancos de madeira na plataforma número um, virados para uma das duas únicas linhas da estação.

Da waiting room – uma sala fechada, quase tão fria como a rua, com duas filas de cadeiras de metal encostadas à parede e duas casas-de-banho – saía um tremendo cheiro a detergente do chão ainda, e eternamente, molhado. A paisagem à volta da estação, o silêncio pouco comum e os bandos de pássaros que se passeavam por ali passaram a ser razão suficiente para que escolhesse ficar na rua. Sentei-me no banco de madeira, aconchegando as minhas luvas, as minhas meias e botas polares. De tão planos que os campos eram, dava para ver lá ao fundo umas montanhas cobertas de neve. Em vários pontos havia um ajuntamento de árvores, que perderam as folhas há já algum tempo. O sol, muito leve, quebrava por vezes um típico céu de neve. Aprendi a identificar ‘um céu de neve’ na Bélgica, no dia 25 de Janeiro de há quatro anos, véspera do primeiro dia de neve desse ano. Fui visitar a cidade de Gand com um colega e ele disse-me: ‘Vai nevar em breve. Hoje está um céu de neve’. A meu pedido explicou-me: ‘o meu avô ensinou-me que antes de começar a nevar, o céu fica com uma capa branca, como se estivesse mais próximo das nossas cabeças’. Não tinha voltado a ver um céu de neve até vir para a Escócia. Portanto, em alguns sítios, o sol cortava o céu e dava luz aos contornos das árvores. Para além do branco da neve que cobria quase tudo, viam-se algumas casas e, de vez em quando, aparecia um ou outro autocarro, o mesmo que me trouxe à estação.

Entretanto já sabia que eram 11h da manhã (uma senhora com um gorro mal escolhido fez questão de me dizer as horas antes de ter ido fazer tempo para casa). Portanto, decidi deixar as minhas coisas no banco e dirigi-me ao balcão dos chocolates. Apareceu um senhor a esfregar as mãos, vestido de preto com um gorro na cabeça. Pedi-lhe um café expresso, mas acabei por aceitar o que ele tinha: filter coffee. Para além da janela onde estavam expostos chocolates, rebuçados e um ou outro bolo, havia uma porta aberta, que deixava ver uma enorme máquina de café avariada. E numa das paredes havia uma única prateleira de madeira com livros, mal arrumados, aparentemente à disposição de quem precisa de esperar. O senhor entrou para uma outra sala, separada por uma parede, de onde me viria a trazer o meu café. Percebi que a única forma de ele saber se tinha algum cliente ao balcão, enquanto estava lá dentro sentado, era através do reflexo num espelho estrategicamente colocado para esse efeito. Pedi-lhe se poderia tirar um livro. Trouxe um, The Edge, e voltei ao meu banco, onde viria a encontrar um escocês agasalhado a um ponto máximo, enquanto arranjava a máquina de venda de bilhetes.

Já sentada, consegui perceber detalhadamente de que direcção vinha o vento e ainda tentei utilizar, em vão, a minha mala como corta-vento. Lentamente as minhas soluções revelaram-se inúteis e tive de reconhecer a inevitabilidade de recolher à waiting room. Na sala, um outro ecrã pendurado num canto piorava ainda mais o ambiente. A imagem, que saía persistentemente pelo fundo do ecrã como se alguém se entretivesse a rodar uma manivela, deu-me a conhecer que o comboio estava ainda mais atrasado. Esse ecrã era o único ponto de movimento até chegar a pequena Poppy – ou outro nome semelhante. Uma minúscula escocesa e a sua mãe que, como eu, esperavam o único comboio a chegar e a partir daquela estação numa manhã inteira. A pequena passou o tempo a subir e descer das cadeiras, a dizer-me adeus de vez em quando e a comer uma espécie de sementes que a mãe lhe dava de um pacotinho de plástico.

Li o primeiro capítulo do livro e decidi devolvê-lo. A descrição da tentativa clandestina de fuga de um pequeno rapazinho e da sua mãe ocupou-me algum tempo. Fugiam do padrasto do miúdo, para o que o rapaz designava como‘the promised land’, uma vida sem nunca mais ter de recear ninguém, segundo a mãe lhe prometera. Entre as páginas desse livro estava a Mulan, da Disney, recortada de uma revista. Devolvi-o e voltei ao banco de madeira. Desta vez, anunciava-se uma quebra do silêncio. O ensurdecedor ruído de aviões militares, que em St Andrews me levam sempre a levantar a cabeça, revelou-se ser persistente. Em três minutos, três aviões levantaram um supersónico voo, rasgando incrivelmente o céu. Via-os a levantar voo mesmo ali ao lado e a passar por cima da estação ao ponto de fazer tremer o café que já tinha dentro do meu estômago. Dirigi-me ao senhor dos chocolates com a dúvida óbvia do que é que estava a acontecer, e fiquei a saber que por trás do único amontoado de casas à vista existe a base da Royal Air Force Leuchars. Segundo vim a descobrir, "the Station is primarily responsible for maintaining Quick Reaction Alert (North), providing crews and aircraft at high states of readiness 24 hours a day, 365 days a year, to police UK airspace and to intercept unidentifed aircraft". As horas seguintes revelar-se-iam um espectáculo de acrobacias no céu, com uns aviões a levantar e outros a pousar. Cada voo daqueles deve ser uma fortuna, pensava eu.

A estação foi-se enchendo e, para além da Poppy e da mãe, voltou a senhora do gorro. Senhora de gatos, imaginei eu, tanto criticava a inexistência de informação no site da Scotrail, como expressava uma certa alegria por tamanha alteração na sua rotina. Passou o tempo a deslocar-se entre o guichet da estação e a sala de espera, assumindo um papel de mensageira dos minutos de atraso do único comboio para Edimburgo. Na plataforma da linha um, entre outros estudantes, havia um rapaz que chegou com uma bicicleta montada e que a desmontou cuidadosamente antes de se sentar no segundo banco de madeira. Duas rodas para um lado e o corpo da bicicleta para outro. A cirandar no pouco espaço existente havia um homem com ar de investigador, daqueles mais dedicados e reservados. Baixo, sem ser gordo, vestido de preto, com barba e pêra loura e um cabelo ralo preso num frágil rabo-de-cavalo. Imaginei-o envolvido nas suas teorias rocambolescas, emaranhado em números e algoritmos, enquanto amaldiçoava o barulho ensurdecedor dos aviões. Numa das vezes em que lhe prestei mais atenção, ele vinha do senhor dos chocolates com o que me pareceu ser uma bifana no pão, embrulhada num guardanapo. E comia-a exactamente como eu imaginei. Esganava a bifana entre o pão, muito apertadinho, segurando-o com um guardanapo no fundo. As dentadas que davam tinham medidas certas e nunca dava uma dentada no lado esquerdo sem que desse logo no lado direito do seu pãozinho.

O tempo passou, as minhas mãos acusaram o frio, assim como os meus pés e tive de recolher à sala com o chão ainda molhado. Tive de respirar fundo enquanto dava por mim a pensar em fontes de calor como o ar que saía do motor da máquina de venda de batatas fritas. Finalmente, às 13h, apareceu lentamente na linha um o que me pareceu ser um comboio. Ironicamente, vinha mesmo devagar como se viesse a limpar a neve no caminho. E os meus olhos, que esperavam ver um comboio a sério, espantaram-se quando se depararam com duas minúsculas carruagens, como se o único comboio do dia fosse afinal um brinquedo. Éramos pelo menos trinta pessoas na estação, à espera para nos enfiarmos dentro de um comboio de brincar.

Foram precisos vinte minutos para que nos esganássemos todos lá dentro. E depois de ter percebido que iria em pé até Edimburgo, antes de o brinquedo emitir uma buzina, olhei pela janela e vi o rapaz da bicicleta a amaldiçoar o mundo por não ter conseguido entrar com a traquitana toda tão bem desmontada. A partir dali, seriam duas horas e meia em pé, com um comboio a desbravar terreno, gerando em mim a sensação de que não chegaria inteira. Ao meu lado a Poppy desesperou-se com tanta chatice, e desesperou-me a mim também. Quando finalmente cheguei a Edimburgo, ainda a cinco horas de distância de Londres, encontrei a senhora do gorro. Percebi que a saga ainda não tinha acabado.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Quando digo que os corvos nesta cidade são animais perigosos, refiro-me ao facto de ter de ser eu a desviar o meu caminho porque eles não se movem nas ruas. Sobretudo quando estão a meio de uma qualquer refeição. Só não esperava ver um corvo a levar com ele a caixa de plástico que estava no jardim, para dar água aos pássaros. Não tive tempo suficiente para fotografar o acontecimento, mas ele chafurdou na neve do jardim primeiro, fez uma pausa no telhado antes de desaparecer a voar com a caixa (com cerca de um palmo de largura).

Ainda hoje tinha olhado para a caixa, já sem água, quando saí de manhã para o jardim, cumprindo a promessa que fiz de alimentar os pássaros. Com os meus chinelos, cometi o erro de enfrentar o tapete de neve e afundá-los nos vinte passos que dei, ida e volta, até ao ramo onde está pendurado o objecto preferido dos pássaros. Um bonito tubo de vidro, com duas saídas em baixo, e com dois pequenos espaços onde eles podem pousar, enquanto se deliciam. Apercebi-me de que as pontas dos meus dedos gelaram, num curto intervalo de tempo, deixando de os sentir. Abandonei o jardim e só depois me apercebi que estão -3C em St Andrews (e -10C em Edimburgo) e que o frio desta noite tornou o azeite que tinha numa garrafa, dentro do armário da cozinha, numa espécie de geleia.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Em muitas das vezes em que digo "I am thinking', dá-me uma suave vontade de facilitar e substituir o 'th' pelo 's'. Nunca tinha tido oportunidade de o substituir até anteontem quando, numa festa, enquanto falava com alguém, comecei a ser engolida pelo sofá. E, pela primeira vez, com uma felicidade que ninguém percebeu, disse: 'I am sinking'.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Mundo taxista


O meu objectivo era chegar ao aeroporto de Edimburgo às 4 horas da manhã de uma quinta-feira, para um voo às 6. Como não existe estação de comboio em St Andrews e os autocarros para Edimburgo terminam por volta das 19h, tinha duas soluções: passar onze horas no aeroporto ou apanhar um táxi. Decidi apanhar um táxi para vir a concluir que é uma profissão muito característica, onde quer que se esteja. E concluir ainda que seria uma delícia um dia juntar taxistas portugueses e escoceses.

Combinámos às duas da manhã junto à fonte e assim caminhei eu para lá, alguns minutos antes. Duas da manhã é uma hora em que a cidade está absolutamente morta, as ruas abandonadas, como se sem sabermos tudo tivesse fugido. Arrastei a minha pequena mala pelas pedras, evitando acordar os dois lados da rua. Enquanto me aproximava do local combinado, vejo um táxi a acender as luzes e iniciar lentamente uma volta silenciosa à fonte. Fui-me aproximando, quebrando o silêncio com as rodas da mala, mas quanto mais me chegava perto do táxi, mais entrava na ausência de vista do seu condutor, que continuava a volta silenciosa à fonte. Dei por mim a rir, sozinha, dado o ridículo de continuar a arrastar a minha mala lentamente atrás de um táxi que insistia em não parar. Assim que finalmente me viu, iniciou-se a saga até ao aeroporto.

Pedi ainda o favor de passar à porta da biblioteca, para que pudesse deixar dois livros na caixa do correio - caso contrário, pagaria a multa da minha vida se não os devolvesse durante a semana em que viria a estar no Luxemburgo. Dali seguimos para o aeroporto de Edimburgo, numa viagem surreal até à auto-estrada. Estradas sem um único ponto de luz, com excepção dos olhos iluminados dos coelhos, esquilos e, poderia jurar, até um mega-ouriço que, encantados e desnorteados por tamanha mudança de luz na sua vida, decidiram cruzar as estradas. De resto, nada mais. As estradas têm dois sentidos, trocados para a perspectiva de alguns condutores europeus, e no total terão a largura necessária para caberem dois carros dos mais estreitos. Portanto, a maior parte da viagem é feita no meio das duas faixas, por entre curvas cuja direcção é invisível até ao momento em que já acabaram. De onde em onde, placas que se iluminam com a luz dos faróis anunciam 'lomba sem visibilidade'. Isso significa descer a um nível consideravelmente inferior, observando lá de baixo o carro que vem, lá em cima, em sentido contrário. Sem que tivesse nenhuma ideia se estaria a caminho do aeroporto ou não, tentei apreciar a viagem.

Soube que o senhor, tipicamente escocês, de barriga bem mais visível que as curvas da estrada, é adepto do Manchester United. Dei conta da minha ignorância, perguntando se 'nessas equipas' não existem jogadores portugueses. Também me falou de Fátima, quando a conversa se estendeu a Portugal. A simpatia fez com que falássemos sobre o seu percurso como taxista. Percebendo por vezes só algumas das palavras que compunham as suas frases - repito, ele era escocês - percebi que tinha sido pescador durante muito tempo. É claro que estas conversas ficam sempre ao gosto de cada um... Falámos sobre as estradas também, ele explicou-me que estava a seguir um atalho para o aeroporto. Depois de os olhos se habituarem à escuridão, encostada ao vidro do lado esquerdo, consegui lá bem longe ver algumas estrelas, que pela primeira vez me deram conforto. Percebi, depois de ele me ter explicado, que a faixa ao longe onde não se via luminosidade nenhuma era mar. Estávamos a fazer o percurso junto à costa. Abordámos mais tarde o tema 'taxista'. Expliquei que em Portugal era uma profissão interessante, que se aprendia muito com taxistas e que às vezes havia alguns conflitos entre eles. Lançou a gargalhada do dia e garantiu-me que isso não acontecia aqui. Ao fim de uma hora e meia, deixou-me no aeroporto. Dei-lhe o dinheiro para a mão e perguntou-me: "quer o troco?". Tive de dizer que sim, eram cinco libras. Aí concluí que os taxistas portugueses e escoceses não só entender-se-iam muito bem, como também, afinal, teriam muito para ensinar uns aos outros.

"Garanto-lhe que seria Portugal"

Absorvidos muitos dos hábitos escoceses, está adaptada a minha vida a esses mesmos hábitos e tradições. Este sentimento faz-me lembrar uma conversa que um dia tivemos com um jornalista americano, Raymond Bonner. Há um risco em ficar-se cego ao que nos rodeia quando passamos muito tempo num mesmo sítio. Como quando um jornalista chega a um país, como correspondente estrangeiro, e consegue identificar a presença de militares na rua. Poderá dizer que se vive um ambiente de repressão. "Dois ou três anos depois, isso passa a fazer parte do dia-a-dia", deixando de o ver como uma característica do ambiente da cidade.

Entende-se melhor o sotaque escocês, estão entranhados os estranhos horários, abandonei os lanches e só almoço e janto (e ceio, lamento). Já sei que "sair à noite" significa encontrarmo-nos às 20h30 e sair de uma discoteca às 2h. Já não faço os maiores caminhos e conheço os atalhos, diminuo o tempo de chegada às aulas. Reconheço as garrafas de leite e a inexistência de pacotes, aceito o facto de os multibancos terem no máximo três opções diferentes de operações (somos mesmo evoluídos, nós portugueses), já sei que se estende a mão a quem não se conhece e se dá um abraço estranho a quem já se conhece, habituei-me a pagar 1.25£ por um café expresso que me vou arrepender de ter bebido, aceito o facto de ter de subsitituir o hábito do café pelo hábito do chá. Assim como, depois de mais de uma semana de caos, a neve e tornou uma companhia (nem sempre boa), ou como as pedras onde o carteiro entala o carrinho se transformaram numa inteira pista de gelo, gerando ameaças de quedas aparatosas. Já sei que os autocarros podem chegar atrasados e que as estradas deste país são péssimas (alguém que diga mal das portuguesas venha para cá viver). E também cá, numa mesma chamada telefónica para um qualquer serviço público, conseguimos falar com três departamentos diferentes, deixar o nosso número de telefone e soletrar repetidamente o nosso nome, para que no fim ninguém saiba dar uma resposta.

É no entanto um país lindíssimo.

Se sair de Portugal e viver outros mundos pode ser sinónimo de um reconhecimento em como nos falta valorização, oportunidades, recompensa ou trabalho, também pode ser um reconhecimento de que temos uma maneira de viver muito especial e, sem que nos apercebamos, com uma tremenda personalidade. Em conversa com um dos casais mais simpáticos a viver há muitos anos em St Andrews, falámos sobre cidades portuguesas que eles já tinham visitado. A comida, o vinho, a serra, o mar, a História. No meio da conversa, confessou-me algo que me fez pensar. "Já visitei muitos países, mas se pudesse escolher um país para passar o fim da minha vida, garanto-lhe que seria Portugal". Para onde é que se vai se, em princípio, não se estiver no fim da vida?

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Momentos que acenam

Voltei a ter um momento para respirar. Há tempo que não o tinha, tudo se atropelava: ensaios e artigos, aulas, encontros, trabalhos fora da faculdade, prazos, frustração, ansiedade, poucas horas de sono. Junto a isso surgia, leve, levemente, uma dúvida sobre a decisão que tomei. Por que razão vim? É fácil não duvidar das decisões quando correm bem. Mas, num segundo, perde-se essa capacidade. E apaga-se a vontade de descrever cada pormenor. Depois disso, pequenos momentos começam a acenar bem lá ao fundo. Emerge-se e volta a resposta: não quiseste mais do que conforto? Aqui o tens.

A semana que passei no Luxemburgo foi uma ajuda para recuperar a sanidade. Senti-me em Portugal. Em qualquer esquina, encontra-se alguém que fale português e, como bom compatriota, essa ligação é sinónimo de ajuda. Seja para conseguir alguma coisa mais depressa, mais barata, com melhor qualidade,seja para partilhar alguns minutos de conversa sobre como era e como é a vida 'lá em baixo' e 'cá em cima'. Fala-se sobre os 1600 euros de salário mínimo para pessoas 'com curso', e dos 1300 euros para pessoas 'sem curso'. Fala-se sobre como 'ao fim do mês ainda dá para ir passear, coisa que lá em baixo é impossível porque o dinheiro nem ao fim do mês chega'. Sugerem-se soluções: '0 governo deveria preocupar-se mais com as pessoas'. E até surgem sugestões das raparigas portuguesas no Luxemburgo, perante qualquer lamentação: 'olha, tenho amigas portuguesas que vieram para o Luxemburgo só para ter dois ou três filhos, sem terem de trabalhar'.

Num dos dias dessa semana, no hotel onde fiquei, cruzei-me no corredor com uma senhora portuguesa responsável pela limpeza dos quartos, uma de muitas tarefas. Junto de um armário, encostado a uma parede, ela tirava e arrumava toalhas. Perguntei-lhe há quanto tempo estava no Luxemburgo, há quanto tempo trabalhava ali, como tinha vindo. Explicou-me parte da vida dela, descreveu-me como ali é possível 'dar aos miúdos tudo: playstations, telemóveis, televisões'. Isso dito sem qualquer pretensão, apenas como reflexo da liberdade que um salário maior ao fim do mês pode dar. 'Cada vez que vou lá a baixo vejo raparigas de 25 ou 30 anos que parecem velhas. Andam tristes e não se arranjam. Mas percebi não se arranjam porque não têm dinheiro. É triste'. Falava com uma certa angústia - ou, tão melhor conceito, saudade - em relação ao que fica em Portugal. Não era orgulho ou vaidade. Viver no Luxemburgo resulta apenas de uma razão: procura de uma vida melhor que ali conseguiu encontrar. E voltar para Portugal passa a ser uma meta muito distante. Acabámos por conversar muitas outras vezes durante a semana. Conheci a filha dela que, com nove anos, fala cinco línguas. Entre o muito trabalho dos meus dias, tive-a ao meu lado, sentada a falar um português perfeito, a ensinar-mee palavras em luxemburguês (só me lembro de kanichen, coelho), enquanto pintávamos. Sim, porque para além da escrita do meu ensaio sobre 'conflict management' e da cobertura da competição de culinária, ia pintando as jardineiras de um pescador ou o corpo de uma foca. Deu-me dezenas de rebuçados, que desembrulhava e me obrigava a comer sem parar, e até me prometeu que faltaria às aulas nessa semana, dando a desculpa de que estava com tosse. Por erro da minha parte - ou por incapacidade para corresponder a tanto - acabei por não me despedir dela. Quando me voltei a cruzar com a mãe , percebi que tinha provocado aquilo pelo qual tantas vezes, mais nova, passei. As primeiras grandes desilusões, trazidas pela sensação de que um dia temos alguém que nos dá uma atenção especial e que, sem percebermos, no outro dia desaparece. Talvez por isso, escrevi-lhe um pequeno papel. E no último dia antes de deixar o Luxemburgo, cruzei-me novamente com a mãe no corredor. Quis despedir-me e ela chorou. 'Não gosto de despedidas', disse-me, junto ao mesmo armário das toalhas, fazendo-me pensar em como se vivem as despedidas de forma tão diferente quando se está longe. Fui caminhando pelo corredor, sem sequer pensar, só para evitar vê-la chorar, enquanto agradecia e dizia que por certo não seria uma despedida. 'Voltaremos a ver-nos', lembro-me de dizer. E ainda a ouvi acrescentar baixinho: 'ainda para mais anda sozinha por esses países'.

E ainda antes de regressar à Escócia, em conversa com um chef americano - depois de o ver trabalhar com os chefs portugueses durante cerca de 18 horas por dia durante uma semana - comentei: 'é preciso gostar incrivelmente disto para passar a vida numa cozinha'. Acenou que sim, sem parar o que estava a fazer. E disse-me: 'You lose many people in your life when you choose this'. Incrivelmente também, percebi que aquela resposta tinha muito sentido. 'If you love this and you take this decision, you will have one moment in your life when you stop and you regret all the people you have lost. But, if you love this and you do not take this decision, you will spend your entire life regretting what you have lost and what you are still losing'.


Frustrante inexistência de soluções

Tenho uma apresentação oral na próxima semana sobre a paz liberal. A pergunta principal que se coloca é: 'Como podem as abordagens para terminar um conflito resultar na sua repetição?' Discutir a paz liberal, assente numa perspectiva ocidental sobre o que é o mundo, a sua organização, os valores e princípios fundamentais, assim como as soluções universais para os conflitos no mundo - independentemente da sua natureza específica, contexto, actores e motivos particulares - traz a discussão de tudo o que nos envolve hoje em dia. Contudo, os defensores da paz liberal poderiam questionar: o que está errado quando se está apenas a dar uma oportunidade de escolha a uma sociedade que até então não a tinha? Não se impõe nada, apenas se cria a possibilidade de escolha. Ora não será já isso, no entanto, uma imposição liberal? E como uma das grandes conclusões tiradas neste mestrado é a ausência de soluções, apesar da multiplicidade de críticas, outra questão se coloca: qual é a alternativa à paz liberal?

St Andrews-Lisboa: quatro dias

Quatro dias e mais de seis voos, seis autocarros e dois comboios, incluindo uma passagem por Londres, foram necessários para sair daqui e chegar a Portugal. Foi a sina da primeira pessoa - e provavelmente última - que me visitou em St. Andrews.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Cascos isolados


Apercebi-me hoje de que, dia para dia, perdemos um minuto de luz. O sol põe-se agora às 15:40, mas no dia 9 de Dezembro o pôr-do-sol já será às 15:33. E se o tema predominante se transformou apenas em meteorologia é exactamente porque isso domina a vida de cada uma das pessoas deste país na última semana. Não há jornais, não há correio, não há bancos abertos, não há cadeiras livres na biblioteca e não há forma de aguentar mais de 20 minutos na rua. Vinte são também os graus, abaixo de zero, que têm gelado muitas cidades no norte da Escócia. Por aqui em St Andrews, temos a sorte de ser um bocadinho mais quente. Temperatura máxima para quinta-feira: -7C. Neve e granizo transformaram os nossos dias em pequenas férias: os professores não chegam às aulas, não há conferências nem seminários. Mas se já vivia numa bolha, agora não há dúvida do isolamento de Cascos: as estradas estão cortadas, os autocarros não funcionam, os comboios não andam nos carris gelados e não saem aviões da Escócia desde domingo. Resta-nos respirar fundo e esperar que o tempo mude. E pensar que estamos melhor do que quem vive em terras no norte da Escócia: os carros desaparecem, tapados pela neve, e há gente fechada em csa há 10 dias. Belíssimo país que fui escolher.


Talvez devido ao caos que se instalou na Escócia na última semana, os emails que os professores nos mandam mudaram a despedida de 'Cheers' ou 'Best' para 'Keep warm'. É simpático, embora infelizmente nada seja eficaz nestas alturas.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Tudo se mantém

Vou continuar a ouvir o carrinho do carteiro entalar-se nas pedras e a buzina do carro do senhor do peixe fresco a passar na rua, às 11h30 das sextas-feiras. Vou continuar a enfiar a torrada numa grade e a esperar que a chaleira chie quando a água está quente. No meio de todo o trabalho acumulado dois últimos (quase) dois meses, recupero lentamente a sanidade mental.
Não teria de fazer parte da experiência, mas fez. Depois dos dias em Portugal, tudo deu uma enorme volta, em apenas um dia. Abalada a vontade de viver iludida, resta esperar até conseguir estar de pé e em condições. É noite cada vez mais cedo, o meu termómetro desce cada vez mais quando olho para ele de manhã. Mas pelo que percebi está mais frio no Luxemburgo. Amanhã deixo Cascos por mais uma semana.

sábado, 6 de novembro de 2010

Fora de Cascos

Vou regressar ao tempo tépido e à luz do dia até mais tarde. Por uma semana.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Controlo em mim a tendência em olhar para tudo o que faço e pensar que é a última vez que nestas exactas condições as faço. A última vez que abro as cortinas de manhã com o cuidado necessário para não deitar a baixo o candeeiro com uma bola de vidro, que era da mãe da dona da casa. A última vez que desço as escadas e faço uma torrada, já não na torradeira, mas entalando o pão numa grelha, metida no Aga. A última vez que aqueço a água numa antiga chaleira e que espero que chie até saber que está a ferver. Assim como é a última vez que passo pelo bouquiniste - hoje a mulher do senhor rosado junto aos olhos estava a aspirar a loja - ou como já não vou ouvir o carrinho do carteiro entalar-se nas pedras. Acabaram-se os serões a meia luz, ao calor do fogão, a jantar tarde e a conversar sobre qualquer coisa. Já não terei o jornal todos os dias e não começarei o dia a debater as notícias com a senhora. Já não receberei um copo de vinho chileno quando chego a casa arrasada ou seis rosas e um postal na minha secretária em frente à janela. Já não vou conseguir acompanhar diariamente, logo pela manhã, o crescimento das flores de Natal plantadas recentemente numa grande taça com terra, colocada no parapeito da enorme janela junto às escadas. Está quase a aparecer a primeira flor. Só me vou mudar para duas ruas abaixo e regressarei cá sempre que puder. Só não volta a ser isto. Um dia a minha mãe disse-me que com o tempo aprendemos a não criar ligações tão intensas com tudo o que nos rodeia e que nos defendemos para não criar vida em tudo aquilo que não a tem. Ainda estou a tentar aprender isso.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

We'll see

Tinha ficado de abrir a porta a um senhor que chegaria dentro de alguns minutos, dizendo que aguardasse um pouco. Lá chegou, expliquei-lhe e sugeri-lhe que entrasse e se sentasse. O pior vem quando ele inicia um rol de perguntas, que só sei que eram perguntas pela entoação com que ele as fazia. O sotaque escocês desgraçou o que poderia ter sido um simpático compasso de espera. Sorridentemente, depois de cada uma das duas primeiras perguntas, pedi que repetisse duas vezes. À terceira, não tendo coragem para pedir que repetisse novamente, decidi começar a lançar respostas. Percebia 'weather', e respondia 'Oh, yes, good weather today'. Percebia 'time-house', e respondia 'No, I'll be leaving soon'. Perante o espanto presente nele de cada vez que eu respondia à própria pergunta que eu me tinha colocado, achei que era melhor mudar de táctica. Antes que ele perguntasse alguma coisa, falava eu. Falei da faculdade, dos professores, de Portugal, do trabalho e ausência dele. E ele comentava: 'job'. 'Oh no, there are no jobs there'. 'School'. 'Sure, good school this one'. Tentei voltar a pedir que repetisse. E se a frase tinha inicialmente seis palavras, quando ele a repetia, já chateado, reduzia-a a uma. Que eu mesmo assim não percebia. Optei então por sorrir, suspirar repetidamente e dizer 'We'll see'. independentemente do que ele dissesse. E movi-me para a cozinha, repetindo-me penosamente. Limpei todos os talheres e os copos, pu-los nos armários e arrumei-os por alturas, só para não ter de regressar à frustração de aparentar sérios problemas de compreensão. Finalmente a porta abriu-se e a senhora tratou do escocês.


terça-feira, 2 de novembro de 2010

Alice Dancing Under The Gallows

Uma simples e belíssima história.

Alice Herz-Sommer is 106 years old and she is the world’s oldest Holocaust survivor. A concert pianist and lifelong musician, she lives everyday to the fullest, imparting her optimism and wisdom on all those around her. "Alice Dancing Under The Gallows" is a new documentary.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Melhores histórias nos piores hotéis

Ray Bonner é jornalista e foi durante muito tempo correspondente do New York Times em vários países. Foi nomeado para o Pulitzer em 2001, com um trabalho sobre a pena de morte, trabalho esse que nos disse hoje considerar ser um dos melhores que fez, "talvez porque foi um dos que tiveram mais efeito". Dirigiu-se à nossa mesa no bar, depois de termos assistido a um curto seminário sobre o conflito na perspectiva de um jornalista. Hoje vive em St. Andrews e continua a escrever para o The New York Times e para a The New Yorker. Tem um episódio marcante na Times: a publicação de uma história fê-lo ser afastado de uma secção. A história contava o massacre de uma aldeia em El Salvador, durante a guerra civil, levado a cabo pelos militares salvadorenhos. Mas paralelamente, ainda no contexto da Guerra Fria, os Estados Unidos enviavam apoios para El Salvador. Criticada a publicação da história pela administração de Reagan, Ray foi movido para outra secção, levando-o a demitir-se. Tempos depois foi comprovado o massacre. Contou-nos hoje que desde os 18 anos nunca viveu mais de quatro anos no mesmo sítio. Acrescentou ainda que um correspondente não deve ficar num país mais do que dois ou três anos porque "deixa de ver o que o rodeia". E lembrou o que alguém um dia lhe disse: "as melhores histórias estão nos piores hotéis".

Será outra




Tenho apenas cinco dias mais no conforto da primeira casa que me acolheu. Não volto a apanhar maçãs, nem a ouvir o carrinho do carteiro nas pedras da Market Street. Já não passarei todos os dias pelo bouquiniste e não terei rosas brancas numa jarrinha quando chego a casa. A partir de então, a casa será outra.

domingo, 31 de outubro de 2010

pela Escócia


Foi sem pensar que cedi à tentação de passar mais um dia fora de St Andrews. Tende a ser a seguir aos momentos de ausência de pensamento que acontecem as melhores coisas ou, então, que cometo os maiores disparates. Enquanto ainda não reflectia, quebrei a rotina dos meus sábados de manhã e acordei às sete. Era ainda de noite, tinha os minutos contados para poder estar a horas decentes na paragem do autocarro que nos levaria a Dundee, cidade próxima, onde o carro tinha sido alugado. O destino era a competição de gaita-de-foles: Glenfiddich Piping Championship 2010, em Blair Atholl, uma cidade mais a norte da Escócia.




Seis horas a ouvir gaitas-de-foles dentro de uma sala repleta de chifres pendurados nas paredes foi difícil. A curiosidade em relação ao instrumento e ao seu som está totalmente satisfeita, não restam dúvidas nenhumas. Só preciso de um tempo de descanso até conseguir ouvir a próxima. Sobressaía distintamente o orgulho dos escoceses, com os seus kilts. Diferents xadrezes, cada um marcando a história do seu clã, combinados com casacos nem sempre bem escolhidos. As meias até ao joelho, verdes, cinzentas ou azuis e com sapatos pretos cujos atacadores são apertados no tornozelo. As saias de pregas até ao estômago são apertadas por uns enormes cintos de fivela. É nesses cintos que os homens apoiam as mãos enquanto estão parados à espera, seja do que for. Mas o acessório mais curioso - se é possível quantificar a curiosidade que tudo isto ainda desperta - é uma malinha. Uma malinha que trazem com uma corrente à volta da cintura, como se fosse uma das assustadoras bolsas de cintura, com fecho, que ainda por vezes se vêem em Portugal. Mas estas são diferentes: feitas de pele, com mais ou menos apetrechos, visam resolver a inexistência de bolsos no kilt. Perguntei-me várias vezes o que levariam os homens naquelas bolsinhas. Só depois da competição, enquanto comíamos fish and chips, descobri que moedas é um dos objectos ali colocados, quando atrás de nós um dos vencedores da competição abriu a sua pochette e tirou umas moedas para pagar a sua dose avantajada de fish and chips. Em casos extremos, há quem use uma bengala forrada com padrão de xadrez. Pela primeira vez na competição, houve uma rapariga a participar, a mais nova de sempre (18 anos). Reconheço-lhe todo o valor, pelo papel desempenhado num mundo de gaita-de-foles que continua a ser de homens, orgulhosamente nas suas saias, velhos e novos, gordos e magros, com xadrezes mal combinados ou com elegância digna de um segundo olhar. Passada a fase de ausência de reflexão, apercebi-me de como preciso de me concentrar no pouco tempo que tenho para fazer o muito planeado.

às 17h é noite

e às 8h também.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Quando no fim da década de 80, o descontentamento em alguns países africanos se revelou de forma mais clara, as razões que o explicam são a revolta contra um mau funcionamento dos sistemas unipartidários ou a procura de um sistema político democrático? Procuravam as pessoas apenas que tudo voltasse a funcionar como antes da crise petrolífera ou desejavam um mercado liberal, o direito ao voto e princípios de liberdade individual? Em que é que a abordagem democrática ocidental das últimas décadas difere - nos seus objectivos e metas estruturais em África - da actual abordagem da China ao continente?

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Já estás a tentar

Todos os dias passo pelo menos duas vezes em frente ao bouquiniste da Market Street. Já se tornou hábito olhar para a montra e espreitar lá para dentro. O alfarrabista, de nome Bill, é o mesmo que ao sábado expõe os livros e postais antigos (que passo vários minutos a ver) nas mesas, no meio da rua. De tantas vezes nos cruzarmos, e de tanto tempo que passo a olhar para as fotografias antigas, passámos a cumprimentarmo-nos. Mas nunca antes tinhamos falado. Ontem, de regresso a casa, mesmo tendo passado em velocidade em frente à montra, decidi parar, recuar e voltar a entrar no muito pequeno espaço. Todas as paredes tem prateleiras do chão ao tecto, preenchidas com vários livros. As lombadas distinguem-se pelas cores, pelas alturas, pela largura de cada uma delas. Pedaços de papel já acastanhados estão colados em algumas prateleiras, escritos à mãos, indicando 'History', 'Religion', 'Military', 'Fiction'. Os melhores livros, os mais antigos, com capas castanhas duras e às vezes com reflexos dourados, estão ao fundo numa prateleira pousada na mesa onde o senhor está sentado. Aliás, se ele estiver sentado mal o vejo quando passo na rua, a prateleira dos livros mais caros tapa-lhe a cabeça. No centro da pequena loja, há uma mesa com alguns livros, os mais baratos e para os quais olho sempre com mais atenção. Depois de ver as lombadas de quase todos, e de folhear um ou outro, dedico-me às prateleiras. Frequentemente procuro os livros que não têm nada escrito nas lombadas ou aqueles que, de tão pequenos, ficam entalados entre os maiores. O silêncio sabe bem, associa-se à idade dos livros e faz-me folheá-los com mais cuidado ainda. A madeira do piso do andar de cima range por vezes, resgatando-me de um dos livros. Quando ontem recuei no meu caminho e entrei de novo, lá estava o senhor com quem me cruzo na rua, rosado junto aos olhos e de sorriso simpático. "Já não me lembro o que está a estudar", disse-me. Nunca lho tinha dito, mas agi como se antes tivéssemos falado sobre isso. Perguntou-me mais sobre Portugal, pediu-me que rapidamente resumisse a história política do país, que lhe lembrasse o que era Portugal durante a Espanha de Franco. Disse-me ter sido professor de inglês. "Era bom a dizer se um livro prestava ou não", contou-me, ao mesmo tempo que limpou o pó de dois dos livros caros, fechados e inclinados na prateleira pousada na mesa. "Nunca fui bom a produzir. A escrever, quero eu dizer. Sempre fui muito crítico sobre tudo aquilo que fazia e portanto nunca nada estava bem. Olhava para o que escrevia, percebia o que tinha de mudar e, assim que terminava, relia outra vez e precisava de mudanças. Nunca conseguia acabar". Alargámos a conversa ao jornalismo de hoje, ao que se escreve e sobretudo ao que não se escreve. Falámos de gerações e de expectativas, confessando-lhe não fazer ideia do que estará para vir daqui a uns meses. "Mas pelo menos vou tentar conseguir melhor", respondi-lhe. Ele recuperou o seu sorriso simpático, que até então eu só conhecia da rua, e disse-me: "But you are already trying". Esqueci os livros e disse-lhe que voltaria em breve. Antes de sair, ele agradeceu-me a conversa. Nunca antes um passo atrás tinha sido tamanha recompensa.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Les Moments Sacrés

Comprei os bilhetes de comboio pela internet e reservei especialmente um lugar à janela, para que desde o primeiro minuto fora de St Andrews pudesse absorver a Escócia. Aguardava uma viagem longa, que se revelou bem rápida. O calor do comboio, sempre demasiadamente aquecido, tentou embalar-me e enjoar-me também, mas resisti mantendo os olhos bem abertos a todas as novidades. O dia não estava muito frio e havia sol de Inverno, tão típico dos dias portugueses. No dia anterior, no entanto, a chuva tinha transformado as minhas botas em duas pedras como se as trouxesse atadas aos pés. Concluí que só umas galochas resolveriam o meu problema, ainda agora no início. Chegada a Edimburgo, fui rapidamente engolida por uma bela cidade, de edifícios antigos e altos, dispostos em colinas. Muita gente nas ruas e muitas línguas diferentes. Imediatamente ouvi o som de uma gaita-de-foles que, descobri, viria a ser quase permanente durante o fim-de-semana. Deixei-me levar pelas ruas e pelo sol, percorrendo pela primeira de muitas vezes os jardins da Princes Street. Extensos relvados, pontuados pelas árvores com as habituais cores de Outono. Uma linha de bancos de madeira, estrategicamente colocados de frente para os grandes relvados, trazem para um mesmo jardim diferentes histórias. Pessoas sozinhas ou acompanhadas, de olhos fechados ou concentradas no movimento alheio, a comer ou a beber um café (sempre com leite) nos já habituais copos take-away com um buraquinho na tampa de plástico. Encontrei duas das personagens do livro que estava a ler (até ter de o devolver na biblioteca). Ashima e Gogol, mãe e bebé, ela sentada num dos bancos de madeira, ele a dormir no carrinho, eventualmente enquanto esperavam pelo pai do bebé, Ashoke, que trabalharia no centro da cidade. Ela lia, debruçada sobre si própria, se calhar um dos livros bengalis que trouxe com ela anos antes de abandonar a Índia. (The Namesake, Jhumpa Lahiri.)


Horas mais tarde, viria a conhecer Jean-Marie Téno, realizador de vários documentários sobre a história colonial e pós-colonial de alguns países africanos. Nasceu nos Camarões e vive no sul de França. Inserido no Festival do Cinema Africano, assisti a um dos seus mais recentes documentários: Les Lieux Sacrés. O próprio cinema africano dentro de um filme africano: como um homem numa pequena cidade do Burkina Faso criou um cinema local, num espaço que aluga por mês, tentando que o valor cobrado por cada entrada pague o aluguer desse mesmo espaço no fim do mês. História essa cruzada com um outro homem, que se intitula como 'Écrivain public', pressionado durante anos pela responsabilidade de assumir uma profissão que sustentasse a família, uma profissão "técnica", longe da escrita. Até que um dia desistiu de tudo. E passa hoje os dias a escrever num portão de ferro verde, frases que poucos percebem. Uma terceira história completa o documentário: um artesão, dedicado ao djembé, que assume o papel de ligar a música ao cinema, percorrendo a cidade com o seu djembe a anunciar os filmes desse dia. Lugares sagrados, explicou o realizador, "porque não só o cinema local é visto por muitos como um lugar sagrado, mas também porque nas horas livres entre a projecção dos filmes, esse mesmo espaço é utilizado para oração dos muçulmanos que vivem na cidade". Em conversa depois do filme, Jean-Marie Téno confessou-me conhecer bem Lisboa e gostar especialmente de Fernando Pessoa. Perguntei-lhe se desde o início teve noção de como as pequenas histórias que contava resumiam de forma tão concreta o nosso mundo de hoje. "Confesso que quando os conheci,percebi que havia ali alguma coisa de especial. Só não sabia bem o que era. Vim a descobrir e a concluir isso mesmo: como três pessoas numa cidade que ainda conserva o mais tradicional do país conseguiam resumir tantas histórias". Partilhámos o gosto pelas pequenas histórias e ficou prometida uma passagem por Portugal em breve.

Guardo ainda, da noite de dia 23, o regresso ao hostel onde viria a dormir muito pouco. Muita gente nas ruas à noite e uma lua maior do que alguma vez a vi. Percebi que cada um dos bancos de madeira tem uma chapa de metal com uma dedicatória a alguém. Como se cada um dos bancos representasse uma pessoa, recordando a sua vida, obra, carácter, acto heróico ou, simplesmente, a sua existência.



De domingo ficam as pontas dos dedos inchadas dos 0ºC da manhã e os esquilos ainda a usufruir da liberdade que tiveram durante a noite enquanto ninguém lhes ocupou os relvados. Inevitavemente fica a sensação de um segundo aniversário passado longe de casa, valorizando a liberdade, mas questionando se todas estas sensações - nem sempre boas - fazem parte da própria liberdade. Ou escolhes conforto ou escolhes subir o Evereste, concluí. As duas nunca poderás ter, até porque cada uma delas pertence a mundos diferentes.




Ovelhas pequenas

Perguntava-me como é que os bebés aguentam estas temperaturas. Até perceber que as mães os metem dentro de uns babygrows almofadados, transformando os próprios filhos numa espécie de pequenas ovelhas. Lembrei-me de como uma vez o meu irmão, com um ano, foi levado para cima de um palco numa das festas de natal da escola. Meteram-no dentro de um babygrow com um fecho na barriga, para fazer dele uma ovelha em palco, enquanto as educadoras cantavam canções de natal. Ele chorou o tempo todo e estragou-lhes o trabalho. Quando vejo as mães a meter os bebés dentro dos seus fatos, lembro-me do meu irmão e percebo melhor do que nunca porque é que ele chorou o tempo todo.

sábado, 23 de outubro de 2010

Auê

Mais de um mês depois, vou finalmente sair de Cascos. Por pouco tempo, com destino a Edimburgo.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

18h30

Já janto às 18h30. Inicialmente foi difícil perceber como é que às 19h as pessoas se juntavam para ir beber uma cerveja e se deixavam estar até às 21h ou 22h, sem comerem nada. Ou como é que iam para as conferências às 18h e conseguiam não ter o estômago a roncar. Atrevi-me a perguntar: nunca tens fome? E às 19h recebi a resposta: jantei há pouco. Percebi então que eu era a única que permanecia em jejum e que vinha para casa jantar às 22h. Então lá cedi e deixei-me entrar nos horários deles. Janto às 18h30 antes de sair de casa. E é por isso que às 22h volto a estar cheia de fome.

Lá estavam

Enfrentei a manhã, bem cedo, quase ainda de pijama. Vi o sol a nascer, vindo do fundo da rua, enquanto caminhava em passos bem rápidos em direcção ao auditório onde ainda estariam os meus óculos. Fui cedo demais, tudo estava fechado. Dei a volta inteira ao Quad, um quadrado de edifícios antigos, cada um com auditórios e salas, com um belíssimo relvado no centro dessse quadrado. Fui conhecer os espaços envolventes enquanto aguardava que alguém aparecesse. Para além das gordas gaivotas, era só eu. Ligeiramente mais gorda também, não fosse eu insistir em ter um pacote de bolachas, deliciosas e apenas por 51p, no meu quarto. Reparei na perfeição com que os relvados estão aparados, assim como os vários canteiros de diferentes flores. A relva tem toda a mesma altura, transformando-se em tapetes tão apetecíveis que obrigam a ter uma tabuleta a avisar: 'No ball games here'. Voltei a entrar no quadrado de edifícios, enquanto reparava que tudo continuava fechado. Até encontrar uma senhora das limpezas de sotaque escocês que me ajudou: chegou o senhor das chaves, também de sotaque escocês, e abriu-me as portas. Subi as escadas do auditório, enganei-me na fila em que me tinha sentado ontem e por instantes pensei que tudo tinha perdido a piada. Até subir mais uma fila e encontrar os meus segundos olhos, pendurados por uma haste, no exacto sítio onde os tinha deixado. Renasci. Vim com eles postos nos olhos até os guardar na respectiva caixa, já em casa. Mas já que estava mais do que acordada, antes de voltar a casa decidi ir conhecer a manhã de St Andrews na East Sands Beach. Cruzei-me com dois cães, o Charlie e o Willie, a quem os donos dão o que parecem ser pequenos marshmallows, deixando-os a lamber os bigodes. Percebi pela conversa dos donos que os bandos de pássaros estão a abandonar esta zona devido ao frio. E realmente lá iam eles no céu, em linha, formando setas que mudam de direcção, ainda que a dos pássaros continue a ser a mesma. Numa manhã em que a temperatura me fez inchar as pontas dos dedos das mãos.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Defeitos

Tenho os mesmos óculos há uns anos. Não é consensual eu dizer há quantos anos os tenho, porque há sempre quem me desminta e diga que tinha outros nessa altura ou que tinha os mesmos noutra altura. Posso dizer que os tenho há, pelo menos, cinco anos. Tenho dado conta que por mais que os limpe com o pano devido, no centro de cada lente há um aglomerado de pequenos riscos que, por vezes, transformam as imagens que estou a tentar ver. Acabo por ter de movimentar a cabeça para alcançar a imagem sem a aberração que os meus segundos olhos criam nas pessoas. Desde sempre, tenho o hábito de os pôr onde calha. Pendurados nas camisas ou num bolso, agarrados ao cabelo, presos nas argolas de um caderno ou em qualquer outro sítio onde aparentemente não se risquem (nunca os deixo fora da caixa azul de plástico, se os puser dentro da minha carteira). Eu própria me pergunto como é que ainda não os perdi. Apanho um susto um dia, guardo-os melhor no dia seguinte. Mas erro sempre e volto ao defeito de os pôr em qualquer sítio. Os óculos anteriores, cinzentos e não roxos como estes, tiveram um triste fim. Numa bomba de gasolina, saí do carro, trazia os óculos ao colo e decidi pousá-los no tejadinho do carro só para esticar as pernas. Estiquei também os braços ao ponto de colocar os dedos na porta de trás do carro que estava aberta. Perante o triz em que não fiquei com três dedos definitivamente esticados, tentei lembrar ao meu irmão a necessidade absoluta em ter mais cuidado com tudo o que o rodeia. Mas quis certificar-me de que se apercebia de como as consequências de não olhar para o que faz podiam ser graves. A concentração no meu discurso fez-me esquecer os óculos. Terão aguentado até aos 50 km/h, antes de entrarmos na auto-estrada novamente. Acabaram ali, embora ainda tenha sofrido algumas horas a rebobinar o meu dia para trás, até perceber onde os tinha visto pela última vez.

Acontece que hoje houve uma conferência sobre se a violência contra injustiças pode ser justificada. Na cadeira à minha frente desenrolou-se uma luta contra a tosse, uma luta que eu acompanhei de mais perto do que a própria conferência, infelizmente. Analisei cada gesto e movimento da pessoa que mais valia ter ficado em casa, mas que veio à conferência e passou o tempo a lutar para não tossir. Cada vez que a tosse falou mais alto, ela agarrava no casaco castanho, com forro de seda ou a imitar seda, com etiqueta da Marks & Spencer, e tossia para o casaco. Em particular para uma manga, a esquerda. Para além de todo o tipo de actividades menos próprias com o cabelo, que me desconcentraram absolutamente e me obrigaram a tirar a pastilha da boca, de tal forma estava já enjoada. As unhas eram enormes e serviam para tudo, o que me criava arrepios nos braços como nunca antes os tive. Acabei por me encostar na cadeira, tentar ouvir o que se discutia na sala e tirei os óculos para que não visse mais do que queria.

Arranjei um sítio óptimo para os óculos: pendurados por uma haste na mesa recolhível à minha frente. Já tinha descoberto isso antes e achei bem pensado. Passou-me de raspão a ideia de poder esquecer-me deles ali, mas concluí que por me ter pensado nisso, isso já não aconteceria. Finalmente consegui concentrar-me na discussão que decorria na sala e abstrair-me da tosse reprimida.

Infelizmente precisei de quatro horas para perceber que os meus óculos ficaram pendurados por uma haste na mesa. Não me adianta chorar, apenas espero que amanhã ainda lá estejam. E se ainda lá estiverem, garanto que nos próximos tempos andarão sempre arrumados.

Low Mood Study

Esta faculdade também tem destas coisas:

I am a PhD student in psychology from the University of St Andrews, looking at how mood affects our ability to solve personal problems. I am interested in individuals who are currently experiencing low mood. If you feel you fit this description, I would be particularly interested in hearing from you. This two-part study will take about 2 hours to complete over two 1-hour long sessions. Those taking part in the study will receive £5 per hour for their participation.


interessante como chego à conclusão que não tenho nenhum conceito que defina a sensação que um grau (centígrado) escocês provoca. se utilizo a concepção de 'muito frio' para designar um grau português, então deixei de ter conceito para definir isto. preciso de me repensar ou, então, arranjar palavras novas.

Nova profissão

Acordei pela primeira vez com o meu termómetro de publicidade ao concelho de Fife a marcar, dentro do quarto, nove graus. Lá fora, um. Percebi que os vidros estavam totalmente embaciados e os três postais que tinha colados no vidro estavam já engelhados. Abri até cima a cortina e vim a descobrir uma nova profissão. Detectei demasiado movimento na janela à frente da minha, da qual devo ter uns cinco metros de distância. Empoleirados em enormes escadotes, dois homens limpavam os vidros exteriores das casas. Com toda a velocidade e perfeição, como quem tem várias janelas para limpar. Eram 8h30m e eles penduravam os panos nos bolsos de trás das calças, enquanto passavam a borracha no vidro. Perguntei-me se viriam limpar a minha janela, algo que me manteve em suspenso por alguns minutos. Não aconteceu. Seguiram pela rua fora, a limpar os vidros das casas. Espero conseguir perceber nos próximos dias se isto acontece sempre que as temperaturas baixam o suficiente para embaciar dramaticamente os vidros ou se é, apenas, uma actividade pontual do concelho de Fife, tão publicitado no meu termómetro.

Hoje, faria anos

Uma das minhas actividades quando não estava a fazer álbuns com a minha avó, a desenhar as mãos uma da outra numa folha de papel ou a fazer as minhas sopas com ervas e patas de formiga no jardim, era espreitar os trabalhos do meu avô na garagem. A garagem sempre foi um lugar encantador, talvez por ter pouca luz ou pelas muitas caixinhas e frascos de vidro espalhados pelas prateleiras onde ele guardava todo o tipo de parafusos, botões e sei lá eu mais o quê. No fundo da garagem era onde ele trabalhava, sentado num banco alto de madeira que, normalmente, ele próprio fazia. Se eu pedisse, ele sentava-me no banco e dava-me pedaços de madeira dos quais eu tentava fazer alguma coisa. Havia uma grande máquina, que ainda hoje não sei o nome, na qual ele rodava uma roldana e conseguia que ela segurasse tudo o que ele quisesse. Eu fazia o mesmo, com os pedaços de madeira. Fascinavam-me também os lápis de carvão que ele utilizava. Eram azuis claros por fora, normalmente já pequenos. Ele afiava-os com uma navalha, não tinha afia, e no topo do lápis não havia uma borracha. Era uma pequena vassourinha para varrer as aparas da borracha. Pendurado junto das chaves de parafusos e martelos, havia outra coisa. Uma régua cor-de-laranja, bem larga, com os formatos de várias bolas, de diferentes tamanhos. Ele utilizava a régua para assinalar bolas nos mapas. Eu utilizava a régua para desenhar as bolas numa folha, enchia-a de bolas de todos os tamanhos. Desenhava e apagava, para poder utilizar a vassoura. Vezes repetidas. E depois pintava as bolas. Quando ele não estava na garagem, estava no escritório a trabalhar. Pedia-lhe a régua e umas folhas, a vassourinha e um furador. Furava uma folha até não poder mais ou até encher o depósito do furador. Depois, espalhava as bolinhas todas para grande desespero do meu avô, que me obrigava a apanhá-las. Só me foi difícil apanhá-las enquanto ele não me ensinou que se eu molhasse a ponta do dedo na língua primeiro, e depois as colasse no dedo, era bem mais rápido. Não voltei a ver a régua, nem os lápis com vassoura. Nem o voltei a ver a ele, mas ainda hoje apanho as bolinhas de papel como ele me ensinou. Hoje o meu avô faria anos.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Depois de uma falha geral da internet, que já ameaçava acontecer desde ontem, tive de fazer tudo aquilo que adiava há umas semanas. Olhar para o computador como se fosse um buraco fechado, fechá-lo e actualizar a resma de jornais. Já tenho um cesto especial para os jornais, é de plástico roxo e dá imenso jeito. Numa metade tenho os que quero guardar por tempo indefinido, recortes de textos que quero - um dia - ler com cuidado, e na outra metade os que ainda não consegui ler. Perante o facto de ter chegado a casa esganada de fome às 19h e ter jantado como se fossem 23h, dei por mim às 20h com todo o tempo livre. Contrariando a tendência dos últimos dias. Lá fora, a temperatura agrava-se e a vontade de sair reduziu-se, depois de um dia quase inteiro na rua. Distribui os jornais em diferentes montes e li-os. Concluo que devem ter redacções enormes porque os jornais de fim-de-semana são espantosamente um aglomerado de suplementos. Home, work, garden, style, travel, education, review, best movies. Para além da revista. Folheei os muitos G2, por vezes também desinteressantes, algo que leva a crer que isso acontece até aos melhores. Recortados os jornais, saltaram para o meu saco de pano beje, do supermercado, o tal que comprei logo nos primeiros dias para entrar no espírito da ida às compras. A verdade é que raramente o uso, porque a decisão da ida às compras não é tomada nunca com muita antecedência. Amanhã levo o meu saco e deixo os jornais na reciclagem, que é aliás um ponto curioso desta cidade. Primeiro, não me parece que muita gente recicle o que quer que seja. Segundo, pagam-se multas se deitarmos o lixo nos caixotes dos outros [o desconhecimento fez com que passasse os primeiros dias a infrigir a lei]. O único ponto de reciclagem está ao fundo de uma das três ruas que, por sorte, até é a minha. Terceiro, achei um caixote para papel aqui perto e penso que é lá que vou deixar os jornais amanhã. Não será de ninguém, concluo desde já. Esse caixote, aliás, fica mesmo ao lado da casa do senhor que arranca com velocidade na sua bicicleta logo pela manhã. Arrisquei a perguntar quem é que ele era, num dia em que falávamos de rosas amarelas e eu me lembrei que em frente à porta da casa de onde ele sai com a sua bicicleta, há um canteiro com enormes rosas amarelas. São bonitas, mas não particularmente, são do tipo de rosas que estão sempre demasiado espapaçadas. Soube então que o senhor tem um historial de vida interessante, filho de um inventor escocês. Curiosamente, lembro-me agora, ontem caminhava para a faculdade com as calças dentro das botas, quando percebi que não estava a funcionar. Parei para as tirar para fora das botas, próxima do canteiro das rosas amarelas, e assisti numa fracção de segundos a uma conversa entre duas pessoas. Uma delas era uma senhora com uns sessenta, ou talvez cinquenta e muitos, nunca consigo distinguir, e o outro era um senhor de bengala (talvez me persigam as bengalas). Só apanhei o momento em que o senhor diz 'Prazer em conhecê-la, eu tenho 94 anos'. A senhora não se mostrou muito admirada, tendo tido o descaramento de lhe responder 'Pois, há um tempo vivia aqui uma senhora com 98'. Segui caminho, ainda que com frio nas pernas, a pensar em como talvez ele pudesse, daqui a quatro anos, voltar ao mesmo sítio e ter a mesma conversa.

domingo, 17 de outubro de 2010

pelo tempo, sem tempo

à sexta-feira inicia-se a luta contra ou pelo tempo. dou por mim demasiadas vezes a lutar contra o tempo, em tão pouco tempo. passam-se dois dias, envolvida nas muitas leituras que não deviam ser tantas e nunca deviam passar a barreira do prazer da leitura. voltar a sentir a véspera da ida ao quadro na primária. era desnecessário. portanto, procuro novamente o equilíbrio entre o prazer da leitura, o tempo que passa e tudo aquilo que queria ter feito e não fiz.

mudei lâmpadas, limpei candeeiros, fui às compras. acordo cedo e começo a trabalhar tarde. acordo cedo e saio de casa tarde. o álbum já não estava no alfarrabista e começo a conhecer de cor os livros expostos na mesa, no meio da estrada, ao sábado de manhã. encontrei café a £1.25, bebi-o sem açucar, pior do que café queimado numa tasca perdida. enquanto o bebia, as asas do saco de plástico que tinha enterradas no braço esquerdo rasgaram-se. apanhei tudo do chão e vim para casa.

não me consegui abstrair da estupidez de uma saída à noite nesta cidade, que me fez lembrar o tempo de erasmus. quatro anos é tempo suficiente para que o mundo seja outro. hoje acordei e trabalhei arduamente. páro agora e pergunto se andarei a controlar e equilibrar bem o meu tempo. a resposta é claro que não.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A arte dos álbuns

Ainda está no bouquiniste o álbum antigo de fotografias, verde escuro, com um cordão amarelo que acaba com dois pedaços de linhas esfarrapadas, que avistei desde que saí da porta de casa, no carrinho de madeira com livros que o senhor põe sempre à porta da loja. São fotografias antigas de uma viagem, feita em Inglaterra, intercaladas com os nomes das cidades e dos lugares cuidadosamente desenhados a carvão e pintados por cima com tinta preta. Na primeira página do álbum, aparece um mapa da zona, com algumas linhas traçadas a cores diferentes. Custa £3.95. Folheei-o de uma ponta à outra na primeira vez que o vi. As folhas são duras, como se fossem de cartão, e os quatro cantos de cada uma das fotografias estão presos com triângulos especialmente indicados para o efeito. A minha avó também os tinha, era com esses mesmos triângulos que preenchia os álbuns, não só com fotografias, mas com recortes de jornais, panfletos, pequenos textos recortados dos panfletos, bilhetes de avião, recibos de restaurantes, lojas ou museus. Quis comprar o álbum, pelas recordações que me trazia. Mas o dinheiro que tinha na carteira era para os dois cafés que iria beber durante o dia, unicamente porque tinha dois encontros já combinados em dois cafés diferentes. Passaram-se dois dias e o álbum continua lá. Amanhã é sábado - nem sei como - e é o meu dia de alfarrabistas. Espero que ainda lá esteja no mesmo sítio.

Procura licenciatura? Aqui é gratuita.

Descobri que as propinas para estudantes de licenciatura, da União Europeia, são gratuitas. Simplesmente gratuitas. Escoceses e união-europeus não pagam, embora os ingleses paguem (!). Os estudantes de países não-UE pagam por todos os outros.

Podem conciliar quase todas as áreas de estudo que quiserem, como por exemplo, para alguém indeciso: química e literatura francesa.

Outros amigos da rua

Segui pelo passeio da Market Street, com obras em vários pontos da rua, do lado contrário ao do supermercado. Por entre carros e pessoas, ouvi um acordeão. Por instantes, a familiaridade de ouvir acordeões nas ruas de Lisboa - nem sempre pelas melhores razões - fez com que a curiosidade se aguçasse a ela própria. Olhei para o lado contrário e não vi nada. Mas continuava a ouvi-lo. Talvez por ter despertado o meu sentido auditivo nesses instantes, consegui ter a percepção assustadora de ouvir um tremendo arroto de um senhor das obras. Instintivamente procurei saber de onde é que o som teria vindo e deparo-me directamente com um homem de fato-macaco e um capacete de protecção branco, uma vez mais com enormes olhos azuis, já com pelo menos meio século de vida. Envergonhado, coisa que me deixou mais admirada que o próprio ecoar do som que ele emitiu, pediu-me imensas desculpas. "I am so sorry, miss". Perante tal arrependimento, tive vontade de lhe dizer 'no problem', mas não achei que fosse a resposta mais acertada. Quando já vinha de regresso para casa, desta vez no passeio do supermercado, oiço novamente o acordeão. Sentado no degrau da porta de uma casa, um senhor tocava acordeão. Pelos traços, pareceu-me ser do leste da Europa. Tinha um cestinho de verga vazio nos pés e, simpaticamente, riu-se. Talvez tenha sido a única pessoa a dar pela presença dele naquele sítio e respondi à simpatia. Por um instante, mesmo que não pelas melhores razões, senti-me perto de Lisboa.

Do yourself a favor

"Seen much of this world?", Ghosh asked Ashoke [...].
"Once to Delhi", Ashoke replied. "And lately once a year to Jamshedpur". [...]
"Not this world", he said. "England, America".
"My professors mention it from time to time. But I have a family", Ashoke said.
Grosh frowned. "Already married?"
"No, a mother and father and six siblings [...]".

Ghosh shook his head. "You are still young. Free", he said, spreading his hands apart for emphasis. "Do yourself a favor. Before it's too late, without thinking too much about it first, pack a pillow and a blanket and see as much of the world as you can. You will not regret it. One day it will be too late."

Jhumpa Lahiri, The Namesake

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Em conversa com um investigador italiano a trabalhar em St Andrews há um ano, depois de ter passado por Inglaterra e pelos Estados Unidos, perguntei-lhe se tencionava voltar a Itália. "No, it is a hard country". Justificou a decisão pela falta de apoio para projectos de investigação e a falta de reconhecimento. Percebi o que queria dizer, mas ele acrescentou: "Em Portugal, penso que é melhor. Há muitas coisas novas a surgir". Talvez estejam a aparecer coisas novas, é verdade, mas será isso suficiente para considerar melhor que Itália? Disse-lhe que talvez não fosse bem assim. Normalmente estas conversas acabam com a pergunta: 'Por que razão então queres voltar para lá?'. Aliviámos a tensão do regresso aos nossos países de origem com a conversa sobre o tempo. Está frio, mas ainda vem mais. Há pouca luz, mas ainda haverá menos.

Paella ou tapas

Vai haver um jantar com vários pratos, originais de diferentes países - não entre estudantes, mas com os vizinhos da rua. Pediram-me que fizesse paella ou tapas, o que me deixou profundamente desiludida. Tive de sublinhar que não eram propriamente pratos portugueses. Conclusão: vou ter de me dedicar profundamente para dar a conhecer a mais dez pessoas aquilo a que, correctamente, se chama Cozinha Portuguesa.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Amigos da Rua

Aos poucos, há pessoas que vou conhecendo apenas por me cruzar com elas na rua. Uma dessas pessoas é um senhor velhinho, que mora umas cinco casas a seguir à minha. Com mais de oitenta anos - ou assim parece - sai de casa de manhã cedo, por vezes à mesma hora que eu. Encontro-o a trazer a sua bicicleta para fora de casa. A porta está mais recuada na rua, por baixo de um arco, com um pequeno canteiro à frente. E ele, enrolado sobre si mesmo, traz já a mochila às costas. Uma mochila muito colada às costas, azul e com alças da mesma cor, que fica mesmo aconchegada a si mesmo. E tendo em conta o quão enrolado anda sobre si - como se tivesse adquirido a posição em que anda na bicicleta - sobe num ápice, equilibra-se e arranca pela loucura que é o chão desta cidade. Se digo arranca, é porque ele arranca mesmo com uma considerável velocidade, para um destino que ainda não sei qual é. Provavelmente a biblioteca, fazendo-me lembrar um outro senhor, esse português, com quem me cruzava várias vezes numa pequena biblioteca em Lisboa. Chegava cedo, encasacado, com uma saca a tiracolo. Andava rápido, embora os passos já não fossem leves. Levava sempre uma mão no peito, a segurar a alça da sua sacola e sentava-se sempre na mesma mesa redonda. Abria grandes livros e copiava, tudo à mão, numa letra impecável e inclinada, como normalmente são as letras de quem escreve há tanto tempo. Assoava-se frequentemente a um lenço de pano, que embrulhava e guardava no bolso. E, por vezes, tirava do outro bolso um saquinho de papel, onde guardava outro lenço com o qual limpava os lágrimas dos olhos. Lágrimas de olhos cansados, apenas, porque escrever páginas e páginas, antes e depois de sair para almoçar, cansa qualquer um.

Cruzo-me ainda com um rapaz que, embora com abrigo, é a única pessoa que por vezes se senta a pedir esmola. Vejo-o no supermercado. Arrasta os pés e tem o cabelo bem rapado, tornando ainda mais visíveis algumas marcas na cara. Não reparei no que comprou, porque me fixei nas últimas palavras quando pagou a conta. "Fique com o troco". Pouco depois, vi-o sentado nuns caixotes, à porta do supermercado, a pedir umas moedas. Talvez por nos cruzarmos tantas vezes, e por eu cometer o erro imperdoável de olhar demasiado para os movimentos das pessoas, acaba por me dizer sempre o que aparenta ser um 'hi' ou 'hey' ou 'hié'. Em resposta, emito um som semelhante.

Outro amigo da rua é o carteiro. Toda a gente se cumprimenta e sorri se os olhares se cruzarem por mais de três segundos (na Bélgica isso nunca me acontecia). Espreito sempre para o carrinho do carteiro - o tal que oiço a encravar-se nas pedras - esperando ver o símbolo dos correios portugueses impressos num caixote. Talvez por isso ele me pergunte se estou à espera de alguma coisa. Sorrio e disse que sim.


Discutimos nos últimos dias a paz liberal. Que responsabilidade têm os Estados ocidentais na gestão e resolução de conflitos? Há responsabilidade humana nessa intervenção? Deve a moral fazer parte de operações de peacebuilding? Até que ponto não é já essa moralidade, por si própria, fruto de valores e de uma cultura? É a moral construída socialmente? O que deve definir a intervenção ou não-intervenção de um Estado num conflito?

Num dos textos sugeridos, a influência dos media internacionais é referida, apontando uma espécie de "obsessão com a hipocrisia". "The charge of hypocrisy resonates powerfully in the modern global media, and those powers which present themselves as idealistic are particularly vulnerable to it. [...] The international media and diplomatic response to the existence of the Guantanamo facility has been thunderous and, at least until lately, continous; Russia's atrocities in Chechnya, in contrast, have received only sporadic attention and occasional, and utterly ineffectual, criticism. The reasons for this are complex, but surely one critical factor is that the United States presents itself as a moral actor, while Russia does not pretend to be anything other than ruthless". Independentemente de ser um exemplo acertado ou um argumento suficiente, o autor acrescenta: "In modern democracies, a blackened reputation and a compelled resignation from public office typically is the worst penalty for failure." (C. Dale Walton, "The Case for Strategic Traditionalism", International Peacekeeping, Nov 2009)

Uma das discussões recentes terminou com a questão se a sociedade - as pessoas, em específico - não poderá ser mais liberal que o próprio governo que, supostamente, a representa. E de outra conferência fica a conclusão: "Liberal peacebuilding is not liberal enough".