quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Hoje, faria anos

Uma das minhas actividades quando não estava a fazer álbuns com a minha avó, a desenhar as mãos uma da outra numa folha de papel ou a fazer as minhas sopas com ervas e patas de formiga no jardim, era espreitar os trabalhos do meu avô na garagem. A garagem sempre foi um lugar encantador, talvez por ter pouca luz ou pelas muitas caixinhas e frascos de vidro espalhados pelas prateleiras onde ele guardava todo o tipo de parafusos, botões e sei lá eu mais o quê. No fundo da garagem era onde ele trabalhava, sentado num banco alto de madeira que, normalmente, ele próprio fazia. Se eu pedisse, ele sentava-me no banco e dava-me pedaços de madeira dos quais eu tentava fazer alguma coisa. Havia uma grande máquina, que ainda hoje não sei o nome, na qual ele rodava uma roldana e conseguia que ela segurasse tudo o que ele quisesse. Eu fazia o mesmo, com os pedaços de madeira. Fascinavam-me também os lápis de carvão que ele utilizava. Eram azuis claros por fora, normalmente já pequenos. Ele afiava-os com uma navalha, não tinha afia, e no topo do lápis não havia uma borracha. Era uma pequena vassourinha para varrer as aparas da borracha. Pendurado junto das chaves de parafusos e martelos, havia outra coisa. Uma régua cor-de-laranja, bem larga, com os formatos de várias bolas, de diferentes tamanhos. Ele utilizava a régua para assinalar bolas nos mapas. Eu utilizava a régua para desenhar as bolas numa folha, enchia-a de bolas de todos os tamanhos. Desenhava e apagava, para poder utilizar a vassoura. Vezes repetidas. E depois pintava as bolas. Quando ele não estava na garagem, estava no escritório a trabalhar. Pedia-lhe a régua e umas folhas, a vassourinha e um furador. Furava uma folha até não poder mais ou até encher o depósito do furador. Depois, espalhava as bolinhas todas para grande desespero do meu avô, que me obrigava a apanhá-las. Só me foi difícil apanhá-las enquanto ele não me ensinou que se eu molhasse a ponta do dedo na língua primeiro, e depois as colasse no dedo, era bem mais rápido. Não voltei a ver a régua, nem os lápis com vassoura. Nem o voltei a ver a ele, mas ainda hoje apanho as bolinhas de papel como ele me ensinou. Hoje o meu avô faria anos.

6 comentários:

Anónimo disse...

O nome da máquina é torno...


*

Raquel Albuquerque disse...

Enciclopédia! Saudades. E obrigada.

Anónimo disse...

:-)


Tenho cá uma régua dessas, levo no próximo almoço!

Jupiteeer disse...

É adorável "ouvir-te falar" sobre coisas que eu também uso diariamente e que são perfeitamente comuns mas que eu nunca tive oportunidade de usar com o avô. E apesar disso acabo por ser a única que usa desses materiais... A nossa família não faz sentido nenhum.

Raquel Albuquerque disse...

Tu tens lápis com vassouras no topo, Catarina? Se isso existe, ganhei o dia.

Raquel Albuquerque disse...

Corrigindo: se isso existe AINDA. Porque, pelo menos entre 1986 e 1990, existiram.