terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Sailing away from the safe harbor

"Twenty years from now you will be more disappointed by the things that you didn't do than by the ones you did. So throw off the bowlines. Sail away from the safe harbor. Catch the trade winds in your sails. Explore. Dream. Discover."

Mark Twain




segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Vê lá se és mais preciso

Acho piada como os teóricos abertamente se criticam uns aos outros. Escrevem frases que os imagino a dizer, sentados em cadeiras de plástico branco, num café, com um dos braços apoiados no encosto da cadeira, o pé esquerdo apoiado perto do joelho direito e um ar de desprezo teórico. Ar de quem há muito tempo passou para lá dos pensamentos diários sobre compras no supermercado, cieiro nos lábios ou pés molhados.

When Richmond turns to prescriptions, however, he offers little more by way of detail than either Duffield or Pugh. Emancipatory peacebuilding, he says, would focus more on ‘social welfare and justice’ and embrace the ethic of ‘human security’. More precision would be welcome.

Roland Paris, "Saving Liberal Peacebuilding" (2010)

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Juntar letras e pouco mais

Aprendemos a ler ao mesmo tempo. Juntámos as primeiras letras exactamente nos mesmos dias. Crescemos juntas durante um tempo, estudámos nos mesmos sítios. Um dia eu decidi continuar a juntar letras. Ela decidiu juntar números. Desde então que os junta. E eu, desde então, junto pouco mais que letras. Hoje, mais de duas décadas depois soube que ela ganha oito vezes mais do que eu. Não é a primeira. Mas há dias, como o de hoje, em que páro e penso: conseguirei algum dia vir a juntar algo mais? Ao fim do dia, a resposta que dei a mim mesma não foi a melhor. Resta-me apenas a decisão que tomei quando perdi os dentes de leite: juntar letras.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Doce gestão de conflitos

Foi no fundo das cozinhas de um hotel no Luxemburgo que escrevi partes do meu segundo trabalho do mestrado. Com o título - A gestão de conflitos semeia conflitos futuros - tentei no meu ensaio sustentar a ideia de que a gestão superficial de um conflito, quando limitada a conversas diplomáticas sem envolver as pessoas 'não-estatais', nunca poderá resolver um conflito nas suas raízes. Tomando como exemplo os limites de acção da missão das Nações Unidas em Caxemira ou a inacção perante o genocídio no Ruanda, definem-se críticas às abordagens internacionais. E questiona-se: a maior limitação era a 'nova natureza' da guerra ou o tipo de abordagem trazida da Guerra Fria? Os conflitos foram designados como intractáveis pela sua natureza ou pela ausência de uma abordagem directa às suas origens? O fim da Guerra Fria e as novas abordagens a partir dos anos 90 também não se revelariam a solução, ainda que reconhecem uma maior relevância aos indivíduos, mas caindo na tendência de directamente os considerar cidadãos. Abordagens pré-determinadas, de imposição de uma democracia e liberalização do mercado como soluções para qualquer conflito, também não resultaram. Se a gestão de conflitos da Guerra Fria não trouxe paz, as abordagens de resolução de conflitos através da imposição de valores liberais também podem semear futuros conflitos. Agora soube que os cinco mil caracteres que escrevi tiveram um bom resultado, mesmo escritos entre esperas nos aeroportos, viagens de avião, insónias por cansaço extremo ou ao mesmo tempo que pintava desenhos com uma pequena luxemburguesa (que me recompensava com rebuçados). Tiro uma conclusão: dificilmente conhecemos os nossos limites até os testarmos.




terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Faço de tudo para que o tempo passe devagar.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Voltei a sentir os dedos dos pés

A solução para se gostar mais de Portugal e dar mais valor a tudo o que nos rodeia é sair daqui por um tempo. Isso não significa que não nos tornemos mais lúcidos quanto aos enormes defeitos que existem cá. Passamos a saber definir as falhas que já sentíamos enquanto ainda não sabíamos defini-las. E passamos a saber quais são as soluções, algo que se pode revelar frustrante quando nos apercebemos de quão distantes, por cá, ainda estão essas soluções. Mas sair de Portugal é apagar a tendência de que todo o resto é melhor, de que todos os outros são melhores. É passar a ter um termo de comparação que nos permite fazer uma escolha consciente: voltar ou não voltar. Para quem volta, ainda que temporariamente, até os dias de chuva que durante anos tinham uma tremenda influência no estado de humor passaram a ser dias simpáticos. Sentir as pontas dos dedos das mãos e os dedos dos pés durante vinte e quatro horas é uma felicidade. A luz, ainda que em dia de nuvens, é uma dádiva. E se não tivesse conhecido chuva fria, nunca viria a saber que a nossa é quente.



sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Leuchars-Londres: doze horas de observação do mundo escocês

Escolhi subir a rampa e arrastar a minha mala, em vez de agarrar nela e subir as escadas. Tinha apanhado o autocarro com tempo suficiente para que não precisasse de correr para o comboio. De coração ao largo, depois de ter visto ser cancelado o comboio que na quarta-feira me tiraria de St Andrews e me poria em Londres às 7h30m da manhã de ontem, tentei achar que o melhor era não pensar em nada. Pedido o reembolso e comprado novo bilhete, estava agora a caminho do que achava ser uma viagem directa, de cinco horas, para Londres.

Enquanto me aproximava da estação escocesa de Leuchars, apercebia-me lentamente de que não havia ninguém. Junto a um balcão com chocolates para venda, estava o único funcionário da Scotrail (caminhos-de-ferro escoceses). Diga-se que esta é uma pequena estação, perdida no meio de campos de cultivo, totalmente planos e a perder de vista. A estação apenas tem movimento devido aos estudantes de cascos que ali se dirigem por ser a estação de comboios próxima. O solitário funcionário dirigiu-me a palavra no preciso momento em que eu parei as duas rodas da minha mala e levantei a cabeça para um velho e enorme televisor, de ecrã azul e letras amarelas, pendurado no tecto da plataforma. Ainda que muito pouco moderno ou simpático, consegui claramente ler a palavra: ‘cancelled’. Suspirei e ouvi-o dizer: ‘o próximo para Edimburgo sai às 12h30m’. Preferi não ver que horas ainda eram. E como nunca antes, aceitei ali o meu destino: esperar. Não era algo totalmente surpreendente.

Dois meses e meio na Escócia, duas semanas de neve e temperaturas dez graus abaixo de zero já me tinham feito perceber quão difícil é movimentarmo-nos neste país durante um rigoroso, e inesperadamente precoce, Inverno. Não pus a hipótese de voltar a casa. Agradeci e dirigi-me à máquina dos bilhetes, onde teria de os imprimir. Perante a inexistência de imagem no ecrã, foi fácil perceber que não funcionava e, sem pensar, saiu-me um ‘aqui nada funciona’. Por sinal, o rapaz sorriu e disse que me imprimia os bilhetes. Não havia mais ninguém na estação para além dele, no seu guichet. Ouvia-se apenas o motor de uma máquina de venda de batatas fritas e bebidas frias, o que é muito conveniente quando se está numa estação perdida, rodeada de neve e onde aquilo de que mais distância se quer é o frio. O silêncio, pouco característico de uma estação de comboios, era apenas quebrado lá fora pela música que saía do balcão de chocolates que, viria a descobrir, ser mais do que apenas um balcão de chocolates. Recebi os bilhetes e decidi que a minha espera seria feita num dos dois bancos de madeira na plataforma número um, virados para uma das duas únicas linhas da estação.

Da waiting room – uma sala fechada, quase tão fria como a rua, com duas filas de cadeiras de metal encostadas à parede e duas casas-de-banho – saía um tremendo cheiro a detergente do chão ainda, e eternamente, molhado. A paisagem à volta da estação, o silêncio pouco comum e os bandos de pássaros que se passeavam por ali passaram a ser razão suficiente para que escolhesse ficar na rua. Sentei-me no banco de madeira, aconchegando as minhas luvas, as minhas meias e botas polares. De tão planos que os campos eram, dava para ver lá ao fundo umas montanhas cobertas de neve. Em vários pontos havia um ajuntamento de árvores, que perderam as folhas há já algum tempo. O sol, muito leve, quebrava por vezes um típico céu de neve. Aprendi a identificar ‘um céu de neve’ na Bélgica, no dia 25 de Janeiro de há quatro anos, véspera do primeiro dia de neve desse ano. Fui visitar a cidade de Gand com um colega e ele disse-me: ‘Vai nevar em breve. Hoje está um céu de neve’. A meu pedido explicou-me: ‘o meu avô ensinou-me que antes de começar a nevar, o céu fica com uma capa branca, como se estivesse mais próximo das nossas cabeças’. Não tinha voltado a ver um céu de neve até vir para a Escócia. Portanto, em alguns sítios, o sol cortava o céu e dava luz aos contornos das árvores. Para além do branco da neve que cobria quase tudo, viam-se algumas casas e, de vez em quando, aparecia um ou outro autocarro, o mesmo que me trouxe à estação.

Entretanto já sabia que eram 11h da manhã (uma senhora com um gorro mal escolhido fez questão de me dizer as horas antes de ter ido fazer tempo para casa). Portanto, decidi deixar as minhas coisas no banco e dirigi-me ao balcão dos chocolates. Apareceu um senhor a esfregar as mãos, vestido de preto com um gorro na cabeça. Pedi-lhe um café expresso, mas acabei por aceitar o que ele tinha: filter coffee. Para além da janela onde estavam expostos chocolates, rebuçados e um ou outro bolo, havia uma porta aberta, que deixava ver uma enorme máquina de café avariada. E numa das paredes havia uma única prateleira de madeira com livros, mal arrumados, aparentemente à disposição de quem precisa de esperar. O senhor entrou para uma outra sala, separada por uma parede, de onde me viria a trazer o meu café. Percebi que a única forma de ele saber se tinha algum cliente ao balcão, enquanto estava lá dentro sentado, era através do reflexo num espelho estrategicamente colocado para esse efeito. Pedi-lhe se poderia tirar um livro. Trouxe um, The Edge, e voltei ao meu banco, onde viria a encontrar um escocês agasalhado a um ponto máximo, enquanto arranjava a máquina de venda de bilhetes.

Já sentada, consegui perceber detalhadamente de que direcção vinha o vento e ainda tentei utilizar, em vão, a minha mala como corta-vento. Lentamente as minhas soluções revelaram-se inúteis e tive de reconhecer a inevitabilidade de recolher à waiting room. Na sala, um outro ecrã pendurado num canto piorava ainda mais o ambiente. A imagem, que saía persistentemente pelo fundo do ecrã como se alguém se entretivesse a rodar uma manivela, deu-me a conhecer que o comboio estava ainda mais atrasado. Esse ecrã era o único ponto de movimento até chegar a pequena Poppy – ou outro nome semelhante. Uma minúscula escocesa e a sua mãe que, como eu, esperavam o único comboio a chegar e a partir daquela estação numa manhã inteira. A pequena passou o tempo a subir e descer das cadeiras, a dizer-me adeus de vez em quando e a comer uma espécie de sementes que a mãe lhe dava de um pacotinho de plástico.

Li o primeiro capítulo do livro e decidi devolvê-lo. A descrição da tentativa clandestina de fuga de um pequeno rapazinho e da sua mãe ocupou-me algum tempo. Fugiam do padrasto do miúdo, para o que o rapaz designava como‘the promised land’, uma vida sem nunca mais ter de recear ninguém, segundo a mãe lhe prometera. Entre as páginas desse livro estava a Mulan, da Disney, recortada de uma revista. Devolvi-o e voltei ao banco de madeira. Desta vez, anunciava-se uma quebra do silêncio. O ensurdecedor ruído de aviões militares, que em St Andrews me levam sempre a levantar a cabeça, revelou-se ser persistente. Em três minutos, três aviões levantaram um supersónico voo, rasgando incrivelmente o céu. Via-os a levantar voo mesmo ali ao lado e a passar por cima da estação ao ponto de fazer tremer o café que já tinha dentro do meu estômago. Dirigi-me ao senhor dos chocolates com a dúvida óbvia do que é que estava a acontecer, e fiquei a saber que por trás do único amontoado de casas à vista existe a base da Royal Air Force Leuchars. Segundo vim a descobrir, "the Station is primarily responsible for maintaining Quick Reaction Alert (North), providing crews and aircraft at high states of readiness 24 hours a day, 365 days a year, to police UK airspace and to intercept unidentifed aircraft". As horas seguintes revelar-se-iam um espectáculo de acrobacias no céu, com uns aviões a levantar e outros a pousar. Cada voo daqueles deve ser uma fortuna, pensava eu.

A estação foi-se enchendo e, para além da Poppy e da mãe, voltou a senhora do gorro. Senhora de gatos, imaginei eu, tanto criticava a inexistência de informação no site da Scotrail, como expressava uma certa alegria por tamanha alteração na sua rotina. Passou o tempo a deslocar-se entre o guichet da estação e a sala de espera, assumindo um papel de mensageira dos minutos de atraso do único comboio para Edimburgo. Na plataforma da linha um, entre outros estudantes, havia um rapaz que chegou com uma bicicleta montada e que a desmontou cuidadosamente antes de se sentar no segundo banco de madeira. Duas rodas para um lado e o corpo da bicicleta para outro. A cirandar no pouco espaço existente havia um homem com ar de investigador, daqueles mais dedicados e reservados. Baixo, sem ser gordo, vestido de preto, com barba e pêra loura e um cabelo ralo preso num frágil rabo-de-cavalo. Imaginei-o envolvido nas suas teorias rocambolescas, emaranhado em números e algoritmos, enquanto amaldiçoava o barulho ensurdecedor dos aviões. Numa das vezes em que lhe prestei mais atenção, ele vinha do senhor dos chocolates com o que me pareceu ser uma bifana no pão, embrulhada num guardanapo. E comia-a exactamente como eu imaginei. Esganava a bifana entre o pão, muito apertadinho, segurando-o com um guardanapo no fundo. As dentadas que davam tinham medidas certas e nunca dava uma dentada no lado esquerdo sem que desse logo no lado direito do seu pãozinho.

O tempo passou, as minhas mãos acusaram o frio, assim como os meus pés e tive de recolher à sala com o chão ainda molhado. Tive de respirar fundo enquanto dava por mim a pensar em fontes de calor como o ar que saía do motor da máquina de venda de batatas fritas. Finalmente, às 13h, apareceu lentamente na linha um o que me pareceu ser um comboio. Ironicamente, vinha mesmo devagar como se viesse a limpar a neve no caminho. E os meus olhos, que esperavam ver um comboio a sério, espantaram-se quando se depararam com duas minúsculas carruagens, como se o único comboio do dia fosse afinal um brinquedo. Éramos pelo menos trinta pessoas na estação, à espera para nos enfiarmos dentro de um comboio de brincar.

Foram precisos vinte minutos para que nos esganássemos todos lá dentro. E depois de ter percebido que iria em pé até Edimburgo, antes de o brinquedo emitir uma buzina, olhei pela janela e vi o rapaz da bicicleta a amaldiçoar o mundo por não ter conseguido entrar com a traquitana toda tão bem desmontada. A partir dali, seriam duas horas e meia em pé, com um comboio a desbravar terreno, gerando em mim a sensação de que não chegaria inteira. Ao meu lado a Poppy desesperou-se com tanta chatice, e desesperou-me a mim também. Quando finalmente cheguei a Edimburgo, ainda a cinco horas de distância de Londres, encontrei a senhora do gorro. Percebi que a saga ainda não tinha acabado.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Quando digo que os corvos nesta cidade são animais perigosos, refiro-me ao facto de ter de ser eu a desviar o meu caminho porque eles não se movem nas ruas. Sobretudo quando estão a meio de uma qualquer refeição. Só não esperava ver um corvo a levar com ele a caixa de plástico que estava no jardim, para dar água aos pássaros. Não tive tempo suficiente para fotografar o acontecimento, mas ele chafurdou na neve do jardim primeiro, fez uma pausa no telhado antes de desaparecer a voar com a caixa (com cerca de um palmo de largura).

Ainda hoje tinha olhado para a caixa, já sem água, quando saí de manhã para o jardim, cumprindo a promessa que fiz de alimentar os pássaros. Com os meus chinelos, cometi o erro de enfrentar o tapete de neve e afundá-los nos vinte passos que dei, ida e volta, até ao ramo onde está pendurado o objecto preferido dos pássaros. Um bonito tubo de vidro, com duas saídas em baixo, e com dois pequenos espaços onde eles podem pousar, enquanto se deliciam. Apercebi-me de que as pontas dos meus dedos gelaram, num curto intervalo de tempo, deixando de os sentir. Abandonei o jardim e só depois me apercebi que estão -3C em St Andrews (e -10C em Edimburgo) e que o frio desta noite tornou o azeite que tinha numa garrafa, dentro do armário da cozinha, numa espécie de geleia.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Em muitas das vezes em que digo "I am thinking', dá-me uma suave vontade de facilitar e substituir o 'th' pelo 's'. Nunca tinha tido oportunidade de o substituir até anteontem quando, numa festa, enquanto falava com alguém, comecei a ser engolida pelo sofá. E, pela primeira vez, com uma felicidade que ninguém percebeu, disse: 'I am sinking'.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Mundo taxista


O meu objectivo era chegar ao aeroporto de Edimburgo às 4 horas da manhã de uma quinta-feira, para um voo às 6. Como não existe estação de comboio em St Andrews e os autocarros para Edimburgo terminam por volta das 19h, tinha duas soluções: passar onze horas no aeroporto ou apanhar um táxi. Decidi apanhar um táxi para vir a concluir que é uma profissão muito característica, onde quer que se esteja. E concluir ainda que seria uma delícia um dia juntar taxistas portugueses e escoceses.

Combinámos às duas da manhã junto à fonte e assim caminhei eu para lá, alguns minutos antes. Duas da manhã é uma hora em que a cidade está absolutamente morta, as ruas abandonadas, como se sem sabermos tudo tivesse fugido. Arrastei a minha pequena mala pelas pedras, evitando acordar os dois lados da rua. Enquanto me aproximava do local combinado, vejo um táxi a acender as luzes e iniciar lentamente uma volta silenciosa à fonte. Fui-me aproximando, quebrando o silêncio com as rodas da mala, mas quanto mais me chegava perto do táxi, mais entrava na ausência de vista do seu condutor, que continuava a volta silenciosa à fonte. Dei por mim a rir, sozinha, dado o ridículo de continuar a arrastar a minha mala lentamente atrás de um táxi que insistia em não parar. Assim que finalmente me viu, iniciou-se a saga até ao aeroporto.

Pedi ainda o favor de passar à porta da biblioteca, para que pudesse deixar dois livros na caixa do correio - caso contrário, pagaria a multa da minha vida se não os devolvesse durante a semana em que viria a estar no Luxemburgo. Dali seguimos para o aeroporto de Edimburgo, numa viagem surreal até à auto-estrada. Estradas sem um único ponto de luz, com excepção dos olhos iluminados dos coelhos, esquilos e, poderia jurar, até um mega-ouriço que, encantados e desnorteados por tamanha mudança de luz na sua vida, decidiram cruzar as estradas. De resto, nada mais. As estradas têm dois sentidos, trocados para a perspectiva de alguns condutores europeus, e no total terão a largura necessária para caberem dois carros dos mais estreitos. Portanto, a maior parte da viagem é feita no meio das duas faixas, por entre curvas cuja direcção é invisível até ao momento em que já acabaram. De onde em onde, placas que se iluminam com a luz dos faróis anunciam 'lomba sem visibilidade'. Isso significa descer a um nível consideravelmente inferior, observando lá de baixo o carro que vem, lá em cima, em sentido contrário. Sem que tivesse nenhuma ideia se estaria a caminho do aeroporto ou não, tentei apreciar a viagem.

Soube que o senhor, tipicamente escocês, de barriga bem mais visível que as curvas da estrada, é adepto do Manchester United. Dei conta da minha ignorância, perguntando se 'nessas equipas' não existem jogadores portugueses. Também me falou de Fátima, quando a conversa se estendeu a Portugal. A simpatia fez com que falássemos sobre o seu percurso como taxista. Percebendo por vezes só algumas das palavras que compunham as suas frases - repito, ele era escocês - percebi que tinha sido pescador durante muito tempo. É claro que estas conversas ficam sempre ao gosto de cada um... Falámos sobre as estradas também, ele explicou-me que estava a seguir um atalho para o aeroporto. Depois de os olhos se habituarem à escuridão, encostada ao vidro do lado esquerdo, consegui lá bem longe ver algumas estrelas, que pela primeira vez me deram conforto. Percebi, depois de ele me ter explicado, que a faixa ao longe onde não se via luminosidade nenhuma era mar. Estávamos a fazer o percurso junto à costa. Abordámos mais tarde o tema 'taxista'. Expliquei que em Portugal era uma profissão interessante, que se aprendia muito com taxistas e que às vezes havia alguns conflitos entre eles. Lançou a gargalhada do dia e garantiu-me que isso não acontecia aqui. Ao fim de uma hora e meia, deixou-me no aeroporto. Dei-lhe o dinheiro para a mão e perguntou-me: "quer o troco?". Tive de dizer que sim, eram cinco libras. Aí concluí que os taxistas portugueses e escoceses não só entender-se-iam muito bem, como também, afinal, teriam muito para ensinar uns aos outros.

"Garanto-lhe que seria Portugal"

Absorvidos muitos dos hábitos escoceses, está adaptada a minha vida a esses mesmos hábitos e tradições. Este sentimento faz-me lembrar uma conversa que um dia tivemos com um jornalista americano, Raymond Bonner. Há um risco em ficar-se cego ao que nos rodeia quando passamos muito tempo num mesmo sítio. Como quando um jornalista chega a um país, como correspondente estrangeiro, e consegue identificar a presença de militares na rua. Poderá dizer que se vive um ambiente de repressão. "Dois ou três anos depois, isso passa a fazer parte do dia-a-dia", deixando de o ver como uma característica do ambiente da cidade.

Entende-se melhor o sotaque escocês, estão entranhados os estranhos horários, abandonei os lanches e só almoço e janto (e ceio, lamento). Já sei que "sair à noite" significa encontrarmo-nos às 20h30 e sair de uma discoteca às 2h. Já não faço os maiores caminhos e conheço os atalhos, diminuo o tempo de chegada às aulas. Reconheço as garrafas de leite e a inexistência de pacotes, aceito o facto de os multibancos terem no máximo três opções diferentes de operações (somos mesmo evoluídos, nós portugueses), já sei que se estende a mão a quem não se conhece e se dá um abraço estranho a quem já se conhece, habituei-me a pagar 1.25£ por um café expresso que me vou arrepender de ter bebido, aceito o facto de ter de subsitituir o hábito do café pelo hábito do chá. Assim como, depois de mais de uma semana de caos, a neve e tornou uma companhia (nem sempre boa), ou como as pedras onde o carteiro entala o carrinho se transformaram numa inteira pista de gelo, gerando ameaças de quedas aparatosas. Já sei que os autocarros podem chegar atrasados e que as estradas deste país são péssimas (alguém que diga mal das portuguesas venha para cá viver). E também cá, numa mesma chamada telefónica para um qualquer serviço público, conseguimos falar com três departamentos diferentes, deixar o nosso número de telefone e soletrar repetidamente o nosso nome, para que no fim ninguém saiba dar uma resposta.

É no entanto um país lindíssimo.

Se sair de Portugal e viver outros mundos pode ser sinónimo de um reconhecimento em como nos falta valorização, oportunidades, recompensa ou trabalho, também pode ser um reconhecimento de que temos uma maneira de viver muito especial e, sem que nos apercebamos, com uma tremenda personalidade. Em conversa com um dos casais mais simpáticos a viver há muitos anos em St Andrews, falámos sobre cidades portuguesas que eles já tinham visitado. A comida, o vinho, a serra, o mar, a História. No meio da conversa, confessou-me algo que me fez pensar. "Já visitei muitos países, mas se pudesse escolher um país para passar o fim da minha vida, garanto-lhe que seria Portugal". Para onde é que se vai se, em princípio, não se estiver no fim da vida?

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Momentos que acenam

Voltei a ter um momento para respirar. Há tempo que não o tinha, tudo se atropelava: ensaios e artigos, aulas, encontros, trabalhos fora da faculdade, prazos, frustração, ansiedade, poucas horas de sono. Junto a isso surgia, leve, levemente, uma dúvida sobre a decisão que tomei. Por que razão vim? É fácil não duvidar das decisões quando correm bem. Mas, num segundo, perde-se essa capacidade. E apaga-se a vontade de descrever cada pormenor. Depois disso, pequenos momentos começam a acenar bem lá ao fundo. Emerge-se e volta a resposta: não quiseste mais do que conforto? Aqui o tens.

A semana que passei no Luxemburgo foi uma ajuda para recuperar a sanidade. Senti-me em Portugal. Em qualquer esquina, encontra-se alguém que fale português e, como bom compatriota, essa ligação é sinónimo de ajuda. Seja para conseguir alguma coisa mais depressa, mais barata, com melhor qualidade,seja para partilhar alguns minutos de conversa sobre como era e como é a vida 'lá em baixo' e 'cá em cima'. Fala-se sobre os 1600 euros de salário mínimo para pessoas 'com curso', e dos 1300 euros para pessoas 'sem curso'. Fala-se sobre como 'ao fim do mês ainda dá para ir passear, coisa que lá em baixo é impossível porque o dinheiro nem ao fim do mês chega'. Sugerem-se soluções: '0 governo deveria preocupar-se mais com as pessoas'. E até surgem sugestões das raparigas portuguesas no Luxemburgo, perante qualquer lamentação: 'olha, tenho amigas portuguesas que vieram para o Luxemburgo só para ter dois ou três filhos, sem terem de trabalhar'.

Num dos dias dessa semana, no hotel onde fiquei, cruzei-me no corredor com uma senhora portuguesa responsável pela limpeza dos quartos, uma de muitas tarefas. Junto de um armário, encostado a uma parede, ela tirava e arrumava toalhas. Perguntei-lhe há quanto tempo estava no Luxemburgo, há quanto tempo trabalhava ali, como tinha vindo. Explicou-me parte da vida dela, descreveu-me como ali é possível 'dar aos miúdos tudo: playstations, telemóveis, televisões'. Isso dito sem qualquer pretensão, apenas como reflexo da liberdade que um salário maior ao fim do mês pode dar. 'Cada vez que vou lá a baixo vejo raparigas de 25 ou 30 anos que parecem velhas. Andam tristes e não se arranjam. Mas percebi não se arranjam porque não têm dinheiro. É triste'. Falava com uma certa angústia - ou, tão melhor conceito, saudade - em relação ao que fica em Portugal. Não era orgulho ou vaidade. Viver no Luxemburgo resulta apenas de uma razão: procura de uma vida melhor que ali conseguiu encontrar. E voltar para Portugal passa a ser uma meta muito distante. Acabámos por conversar muitas outras vezes durante a semana. Conheci a filha dela que, com nove anos, fala cinco línguas. Entre o muito trabalho dos meus dias, tive-a ao meu lado, sentada a falar um português perfeito, a ensinar-mee palavras em luxemburguês (só me lembro de kanichen, coelho), enquanto pintávamos. Sim, porque para além da escrita do meu ensaio sobre 'conflict management' e da cobertura da competição de culinária, ia pintando as jardineiras de um pescador ou o corpo de uma foca. Deu-me dezenas de rebuçados, que desembrulhava e me obrigava a comer sem parar, e até me prometeu que faltaria às aulas nessa semana, dando a desculpa de que estava com tosse. Por erro da minha parte - ou por incapacidade para corresponder a tanto - acabei por não me despedir dela. Quando me voltei a cruzar com a mãe , percebi que tinha provocado aquilo pelo qual tantas vezes, mais nova, passei. As primeiras grandes desilusões, trazidas pela sensação de que um dia temos alguém que nos dá uma atenção especial e que, sem percebermos, no outro dia desaparece. Talvez por isso, escrevi-lhe um pequeno papel. E no último dia antes de deixar o Luxemburgo, cruzei-me novamente com a mãe no corredor. Quis despedir-me e ela chorou. 'Não gosto de despedidas', disse-me, junto ao mesmo armário das toalhas, fazendo-me pensar em como se vivem as despedidas de forma tão diferente quando se está longe. Fui caminhando pelo corredor, sem sequer pensar, só para evitar vê-la chorar, enquanto agradecia e dizia que por certo não seria uma despedida. 'Voltaremos a ver-nos', lembro-me de dizer. E ainda a ouvi acrescentar baixinho: 'ainda para mais anda sozinha por esses países'.

E ainda antes de regressar à Escócia, em conversa com um chef americano - depois de o ver trabalhar com os chefs portugueses durante cerca de 18 horas por dia durante uma semana - comentei: 'é preciso gostar incrivelmente disto para passar a vida numa cozinha'. Acenou que sim, sem parar o que estava a fazer. E disse-me: 'You lose many people in your life when you choose this'. Incrivelmente também, percebi que aquela resposta tinha muito sentido. 'If you love this and you take this decision, you will have one moment in your life when you stop and you regret all the people you have lost. But, if you love this and you do not take this decision, you will spend your entire life regretting what you have lost and what you are still losing'.


Frustrante inexistência de soluções

Tenho uma apresentação oral na próxima semana sobre a paz liberal. A pergunta principal que se coloca é: 'Como podem as abordagens para terminar um conflito resultar na sua repetição?' Discutir a paz liberal, assente numa perspectiva ocidental sobre o que é o mundo, a sua organização, os valores e princípios fundamentais, assim como as soluções universais para os conflitos no mundo - independentemente da sua natureza específica, contexto, actores e motivos particulares - traz a discussão de tudo o que nos envolve hoje em dia. Contudo, os defensores da paz liberal poderiam questionar: o que está errado quando se está apenas a dar uma oportunidade de escolha a uma sociedade que até então não a tinha? Não se impõe nada, apenas se cria a possibilidade de escolha. Ora não será já isso, no entanto, uma imposição liberal? E como uma das grandes conclusões tiradas neste mestrado é a ausência de soluções, apesar da multiplicidade de críticas, outra questão se coloca: qual é a alternativa à paz liberal?

St Andrews-Lisboa: quatro dias

Quatro dias e mais de seis voos, seis autocarros e dois comboios, incluindo uma passagem por Londres, foram necessários para sair daqui e chegar a Portugal. Foi a sina da primeira pessoa - e provavelmente última - que me visitou em St. Andrews.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Cascos isolados


Apercebi-me hoje de que, dia para dia, perdemos um minuto de luz. O sol põe-se agora às 15:40, mas no dia 9 de Dezembro o pôr-do-sol já será às 15:33. E se o tema predominante se transformou apenas em meteorologia é exactamente porque isso domina a vida de cada uma das pessoas deste país na última semana. Não há jornais, não há correio, não há bancos abertos, não há cadeiras livres na biblioteca e não há forma de aguentar mais de 20 minutos na rua. Vinte são também os graus, abaixo de zero, que têm gelado muitas cidades no norte da Escócia. Por aqui em St Andrews, temos a sorte de ser um bocadinho mais quente. Temperatura máxima para quinta-feira: -7C. Neve e granizo transformaram os nossos dias em pequenas férias: os professores não chegam às aulas, não há conferências nem seminários. Mas se já vivia numa bolha, agora não há dúvida do isolamento de Cascos: as estradas estão cortadas, os autocarros não funcionam, os comboios não andam nos carris gelados e não saem aviões da Escócia desde domingo. Resta-nos respirar fundo e esperar que o tempo mude. E pensar que estamos melhor do que quem vive em terras no norte da Escócia: os carros desaparecem, tapados pela neve, e há gente fechada em csa há 10 dias. Belíssimo país que fui escolher.


Talvez devido ao caos que se instalou na Escócia na última semana, os emails que os professores nos mandam mudaram a despedida de 'Cheers' ou 'Best' para 'Keep warm'. É simpático, embora infelizmente nada seja eficaz nestas alturas.