sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Leuchars-Londres: doze horas de observação do mundo escocês

Escolhi subir a rampa e arrastar a minha mala, em vez de agarrar nela e subir as escadas. Tinha apanhado o autocarro com tempo suficiente para que não precisasse de correr para o comboio. De coração ao largo, depois de ter visto ser cancelado o comboio que na quarta-feira me tiraria de St Andrews e me poria em Londres às 7h30m da manhã de ontem, tentei achar que o melhor era não pensar em nada. Pedido o reembolso e comprado novo bilhete, estava agora a caminho do que achava ser uma viagem directa, de cinco horas, para Londres.

Enquanto me aproximava da estação escocesa de Leuchars, apercebia-me lentamente de que não havia ninguém. Junto a um balcão com chocolates para venda, estava o único funcionário da Scotrail (caminhos-de-ferro escoceses). Diga-se que esta é uma pequena estação, perdida no meio de campos de cultivo, totalmente planos e a perder de vista. A estação apenas tem movimento devido aos estudantes de cascos que ali se dirigem por ser a estação de comboios próxima. O solitário funcionário dirigiu-me a palavra no preciso momento em que eu parei as duas rodas da minha mala e levantei a cabeça para um velho e enorme televisor, de ecrã azul e letras amarelas, pendurado no tecto da plataforma. Ainda que muito pouco moderno ou simpático, consegui claramente ler a palavra: ‘cancelled’. Suspirei e ouvi-o dizer: ‘o próximo para Edimburgo sai às 12h30m’. Preferi não ver que horas ainda eram. E como nunca antes, aceitei ali o meu destino: esperar. Não era algo totalmente surpreendente.

Dois meses e meio na Escócia, duas semanas de neve e temperaturas dez graus abaixo de zero já me tinham feito perceber quão difícil é movimentarmo-nos neste país durante um rigoroso, e inesperadamente precoce, Inverno. Não pus a hipótese de voltar a casa. Agradeci e dirigi-me à máquina dos bilhetes, onde teria de os imprimir. Perante a inexistência de imagem no ecrã, foi fácil perceber que não funcionava e, sem pensar, saiu-me um ‘aqui nada funciona’. Por sinal, o rapaz sorriu e disse que me imprimia os bilhetes. Não havia mais ninguém na estação para além dele, no seu guichet. Ouvia-se apenas o motor de uma máquina de venda de batatas fritas e bebidas frias, o que é muito conveniente quando se está numa estação perdida, rodeada de neve e onde aquilo de que mais distância se quer é o frio. O silêncio, pouco característico de uma estação de comboios, era apenas quebrado lá fora pela música que saía do balcão de chocolates que, viria a descobrir, ser mais do que apenas um balcão de chocolates. Recebi os bilhetes e decidi que a minha espera seria feita num dos dois bancos de madeira na plataforma número um, virados para uma das duas únicas linhas da estação.

Da waiting room – uma sala fechada, quase tão fria como a rua, com duas filas de cadeiras de metal encostadas à parede e duas casas-de-banho – saía um tremendo cheiro a detergente do chão ainda, e eternamente, molhado. A paisagem à volta da estação, o silêncio pouco comum e os bandos de pássaros que se passeavam por ali passaram a ser razão suficiente para que escolhesse ficar na rua. Sentei-me no banco de madeira, aconchegando as minhas luvas, as minhas meias e botas polares. De tão planos que os campos eram, dava para ver lá ao fundo umas montanhas cobertas de neve. Em vários pontos havia um ajuntamento de árvores, que perderam as folhas há já algum tempo. O sol, muito leve, quebrava por vezes um típico céu de neve. Aprendi a identificar ‘um céu de neve’ na Bélgica, no dia 25 de Janeiro de há quatro anos, véspera do primeiro dia de neve desse ano. Fui visitar a cidade de Gand com um colega e ele disse-me: ‘Vai nevar em breve. Hoje está um céu de neve’. A meu pedido explicou-me: ‘o meu avô ensinou-me que antes de começar a nevar, o céu fica com uma capa branca, como se estivesse mais próximo das nossas cabeças’. Não tinha voltado a ver um céu de neve até vir para a Escócia. Portanto, em alguns sítios, o sol cortava o céu e dava luz aos contornos das árvores. Para além do branco da neve que cobria quase tudo, viam-se algumas casas e, de vez em quando, aparecia um ou outro autocarro, o mesmo que me trouxe à estação.

Entretanto já sabia que eram 11h da manhã (uma senhora com um gorro mal escolhido fez questão de me dizer as horas antes de ter ido fazer tempo para casa). Portanto, decidi deixar as minhas coisas no banco e dirigi-me ao balcão dos chocolates. Apareceu um senhor a esfregar as mãos, vestido de preto com um gorro na cabeça. Pedi-lhe um café expresso, mas acabei por aceitar o que ele tinha: filter coffee. Para além da janela onde estavam expostos chocolates, rebuçados e um ou outro bolo, havia uma porta aberta, que deixava ver uma enorme máquina de café avariada. E numa das paredes havia uma única prateleira de madeira com livros, mal arrumados, aparentemente à disposição de quem precisa de esperar. O senhor entrou para uma outra sala, separada por uma parede, de onde me viria a trazer o meu café. Percebi que a única forma de ele saber se tinha algum cliente ao balcão, enquanto estava lá dentro sentado, era através do reflexo num espelho estrategicamente colocado para esse efeito. Pedi-lhe se poderia tirar um livro. Trouxe um, The Edge, e voltei ao meu banco, onde viria a encontrar um escocês agasalhado a um ponto máximo, enquanto arranjava a máquina de venda de bilhetes.

Já sentada, consegui perceber detalhadamente de que direcção vinha o vento e ainda tentei utilizar, em vão, a minha mala como corta-vento. Lentamente as minhas soluções revelaram-se inúteis e tive de reconhecer a inevitabilidade de recolher à waiting room. Na sala, um outro ecrã pendurado num canto piorava ainda mais o ambiente. A imagem, que saía persistentemente pelo fundo do ecrã como se alguém se entretivesse a rodar uma manivela, deu-me a conhecer que o comboio estava ainda mais atrasado. Esse ecrã era o único ponto de movimento até chegar a pequena Poppy – ou outro nome semelhante. Uma minúscula escocesa e a sua mãe que, como eu, esperavam o único comboio a chegar e a partir daquela estação numa manhã inteira. A pequena passou o tempo a subir e descer das cadeiras, a dizer-me adeus de vez em quando e a comer uma espécie de sementes que a mãe lhe dava de um pacotinho de plástico.

Li o primeiro capítulo do livro e decidi devolvê-lo. A descrição da tentativa clandestina de fuga de um pequeno rapazinho e da sua mãe ocupou-me algum tempo. Fugiam do padrasto do miúdo, para o que o rapaz designava como‘the promised land’, uma vida sem nunca mais ter de recear ninguém, segundo a mãe lhe prometera. Entre as páginas desse livro estava a Mulan, da Disney, recortada de uma revista. Devolvi-o e voltei ao banco de madeira. Desta vez, anunciava-se uma quebra do silêncio. O ensurdecedor ruído de aviões militares, que em St Andrews me levam sempre a levantar a cabeça, revelou-se ser persistente. Em três minutos, três aviões levantaram um supersónico voo, rasgando incrivelmente o céu. Via-os a levantar voo mesmo ali ao lado e a passar por cima da estação ao ponto de fazer tremer o café que já tinha dentro do meu estômago. Dirigi-me ao senhor dos chocolates com a dúvida óbvia do que é que estava a acontecer, e fiquei a saber que por trás do único amontoado de casas à vista existe a base da Royal Air Force Leuchars. Segundo vim a descobrir, "the Station is primarily responsible for maintaining Quick Reaction Alert (North), providing crews and aircraft at high states of readiness 24 hours a day, 365 days a year, to police UK airspace and to intercept unidentifed aircraft". As horas seguintes revelar-se-iam um espectáculo de acrobacias no céu, com uns aviões a levantar e outros a pousar. Cada voo daqueles deve ser uma fortuna, pensava eu.

A estação foi-se enchendo e, para além da Poppy e da mãe, voltou a senhora do gorro. Senhora de gatos, imaginei eu, tanto criticava a inexistência de informação no site da Scotrail, como expressava uma certa alegria por tamanha alteração na sua rotina. Passou o tempo a deslocar-se entre o guichet da estação e a sala de espera, assumindo um papel de mensageira dos minutos de atraso do único comboio para Edimburgo. Na plataforma da linha um, entre outros estudantes, havia um rapaz que chegou com uma bicicleta montada e que a desmontou cuidadosamente antes de se sentar no segundo banco de madeira. Duas rodas para um lado e o corpo da bicicleta para outro. A cirandar no pouco espaço existente havia um homem com ar de investigador, daqueles mais dedicados e reservados. Baixo, sem ser gordo, vestido de preto, com barba e pêra loura e um cabelo ralo preso num frágil rabo-de-cavalo. Imaginei-o envolvido nas suas teorias rocambolescas, emaranhado em números e algoritmos, enquanto amaldiçoava o barulho ensurdecedor dos aviões. Numa das vezes em que lhe prestei mais atenção, ele vinha do senhor dos chocolates com o que me pareceu ser uma bifana no pão, embrulhada num guardanapo. E comia-a exactamente como eu imaginei. Esganava a bifana entre o pão, muito apertadinho, segurando-o com um guardanapo no fundo. As dentadas que davam tinham medidas certas e nunca dava uma dentada no lado esquerdo sem que desse logo no lado direito do seu pãozinho.

O tempo passou, as minhas mãos acusaram o frio, assim como os meus pés e tive de recolher à sala com o chão ainda molhado. Tive de respirar fundo enquanto dava por mim a pensar em fontes de calor como o ar que saía do motor da máquina de venda de batatas fritas. Finalmente, às 13h, apareceu lentamente na linha um o que me pareceu ser um comboio. Ironicamente, vinha mesmo devagar como se viesse a limpar a neve no caminho. E os meus olhos, que esperavam ver um comboio a sério, espantaram-se quando se depararam com duas minúsculas carruagens, como se o único comboio do dia fosse afinal um brinquedo. Éramos pelo menos trinta pessoas na estação, à espera para nos enfiarmos dentro de um comboio de brincar.

Foram precisos vinte minutos para que nos esganássemos todos lá dentro. E depois de ter percebido que iria em pé até Edimburgo, antes de o brinquedo emitir uma buzina, olhei pela janela e vi o rapaz da bicicleta a amaldiçoar o mundo por não ter conseguido entrar com a traquitana toda tão bem desmontada. A partir dali, seriam duas horas e meia em pé, com um comboio a desbravar terreno, gerando em mim a sensação de que não chegaria inteira. Ao meu lado a Poppy desesperou-se com tanta chatice, e desesperou-me a mim também. Quando finalmente cheguei a Edimburgo, ainda a cinco horas de distância de Londres, encontrei a senhora do gorro. Percebi que a saga ainda não tinha acabado.

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