quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Defeitos

Tenho os mesmos óculos há uns anos. Não é consensual eu dizer há quantos anos os tenho, porque há sempre quem me desminta e diga que tinha outros nessa altura ou que tinha os mesmos noutra altura. Posso dizer que os tenho há, pelo menos, cinco anos. Tenho dado conta que por mais que os limpe com o pano devido, no centro de cada lente há um aglomerado de pequenos riscos que, por vezes, transformam as imagens que estou a tentar ver. Acabo por ter de movimentar a cabeça para alcançar a imagem sem a aberração que os meus segundos olhos criam nas pessoas. Desde sempre, tenho o hábito de os pôr onde calha. Pendurados nas camisas ou num bolso, agarrados ao cabelo, presos nas argolas de um caderno ou em qualquer outro sítio onde aparentemente não se risquem (nunca os deixo fora da caixa azul de plástico, se os puser dentro da minha carteira). Eu própria me pergunto como é que ainda não os perdi. Apanho um susto um dia, guardo-os melhor no dia seguinte. Mas erro sempre e volto ao defeito de os pôr em qualquer sítio. Os óculos anteriores, cinzentos e não roxos como estes, tiveram um triste fim. Numa bomba de gasolina, saí do carro, trazia os óculos ao colo e decidi pousá-los no tejadinho do carro só para esticar as pernas. Estiquei também os braços ao ponto de colocar os dedos na porta de trás do carro que estava aberta. Perante o triz em que não fiquei com três dedos definitivamente esticados, tentei lembrar ao meu irmão a necessidade absoluta em ter mais cuidado com tudo o que o rodeia. Mas quis certificar-me de que se apercebia de como as consequências de não olhar para o que faz podiam ser graves. A concentração no meu discurso fez-me esquecer os óculos. Terão aguentado até aos 50 km/h, antes de entrarmos na auto-estrada novamente. Acabaram ali, embora ainda tenha sofrido algumas horas a rebobinar o meu dia para trás, até perceber onde os tinha visto pela última vez.

Acontece que hoje houve uma conferência sobre se a violência contra injustiças pode ser justificada. Na cadeira à minha frente desenrolou-se uma luta contra a tosse, uma luta que eu acompanhei de mais perto do que a própria conferência, infelizmente. Analisei cada gesto e movimento da pessoa que mais valia ter ficado em casa, mas que veio à conferência e passou o tempo a lutar para não tossir. Cada vez que a tosse falou mais alto, ela agarrava no casaco castanho, com forro de seda ou a imitar seda, com etiqueta da Marks & Spencer, e tossia para o casaco. Em particular para uma manga, a esquerda. Para além de todo o tipo de actividades menos próprias com o cabelo, que me desconcentraram absolutamente e me obrigaram a tirar a pastilha da boca, de tal forma estava já enjoada. As unhas eram enormes e serviam para tudo, o que me criava arrepios nos braços como nunca antes os tive. Acabei por me encostar na cadeira, tentar ouvir o que se discutia na sala e tirei os óculos para que não visse mais do que queria.

Arranjei um sítio óptimo para os óculos: pendurados por uma haste na mesa recolhível à minha frente. Já tinha descoberto isso antes e achei bem pensado. Passou-me de raspão a ideia de poder esquecer-me deles ali, mas concluí que por me ter pensado nisso, isso já não aconteceria. Finalmente consegui concentrar-me na discussão que decorria na sala e abstrair-me da tosse reprimida.

Infelizmente precisei de quatro horas para perceber que os meus óculos ficaram pendurados por uma haste na mesa. Não me adianta chorar, apenas espero que amanhã ainda lá estejam. E se ainda lá estiverem, garanto que nos próximos tempos andarão sempre arrumados.

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