domingo, 27 de março de 2011

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O bom de viver fora de Portugal é que em qualquer altura, aconteça o que acontecer, é possível ter saudades de Portugal. Depois do primeiro voo directo Edimburgo-Lisboa de 2011, absorverei todos os instantes dos próximos dias. 

domingo, 20 de março de 2011

Sarajevo-Zagreb em silêncio

Acabados os meus dias em Sarajevo, dia 13 de março, dirigi-me logo de manhã para a estação de autocarros. Despedimo-nos todos no hotel, depois do último pequeno almoço de pão, manteiga, doce e café. Cheguei à estação com mais dois amigos, tencionando levantar dinheiro para o bilhete numa máquina da estação. Faltavam quinze minutos para o meu autocarro, que levaria seis horas a chegar a Zagreb, menos quatro que o comboio. Assim que cheguei percebi que a máquina não estava a funcionar e que o autocarro afinal levaria nove horas a chegar a Zagreb. Depois de ter resolvido o assunto, corri para o meu autocarro, parado na última linha da estação. Sem termos uma língua em comum, o condutor insistiu em explicar-me alguns detalhes sobre a viagem e sobre a mochila que eu ia deixar na bagageira do autocarro. Explicou-me tudo em bósnio, embora tenha dado a entender que não o perceberia. Pediu-me um euro, ou dois marcos, para manter a minha mochila na bagageira. Subi para o autocarro para perceber que o meu lugar estava ocupado por um saco de plástico com o farnel de um senhor sentado no banco do lado. Sabia que não nos íamos entender, optei por me sentar noutro banco, fazendo sons e gestos para dizer 'é o meu banco, mas não há problema , sento-me noutro'. Sentei-me atrás dele, fazendo o meu saco do farnel ocupar o banco ao meu lado. Esperavam-me nove horas sentada, sem sequer conseguir perceber por quanto tempo o autocarro parava para irmos à casa de banho. 
Viria a dar conta durante a viagem que havia dois condutores. Um deles, o que insistia em explicar-me tudo em bósnio, era um senhor arranjadinho. Uma camisola de riscas, aprumado, umas calças azuis de motorista de autocarro, que tiveram um vinco durante as primeiras horas de viagem e o foram perdendo. O outro motorista era mais novo, mais moderno, mais despachado. Trocaram  de lugar uma ou duas vezes durante a viagem, numa das inúmeras paragens que separaram Sarajevo de Zagreb.  Das vezes que parámos, fui sempre a mais rápida a ir à casa de banho, com receio de que  aquilo que eu ouvia dizer quando o autocarro parava - 'pausatakaminuta' - fosse pausa de dois minutos. O maior tempo que passámos parados foi no controlo de passaportes na fronteira. Graças a uma rapariga que falava inglês, consegui entender que tinha de sair do autocarro com o meu passaporte (que já tinha sido visto dentro do autocarro) e fazer parte de uma fila. De regresso ao autocarro, percebi que o senhor do banco da frente já tinha mudado. Tinha entrado um velhinho perfumado que ocupou o lugar do saco do outro senhor e que levou o seu livro aberto no resto da viagem. 
Cheguei a Zagreb oito horas depois de ter saído de Sarajevo, com um estranho aperto de saudades de uma cidade que uma semana antes não conhecia. Sem imaginar que um só dia na capital croata seria suficiente para deixar as melhores recordações.

Os chefs bósnios

Duas gerações de Chefs da BiH.
Enquanto que o chef da geração mais antiga ficou a tratar dos borregos inteiros a assar, o chef da geração mais nova foi-me mostrar as paisagens que eu deveria fotografar. Achou estranho quando eu quis entrar no recanto mais feio das traseiras do restaurante: um armazém pequeno com um enorme alguidar vermelho, cheio de água, onde ainda estava um borrego inteiro de molho. O outro aguardava no espeto de frente para a paisagem que o jovem chef me levou a ver. 







sexta-feira, 18 de março de 2011

As vidas de Sarajevo

A primeira vez que o vi nas ruas da cidade dei conta de como andava todo enrolado. Uns dias depois, percebi que ele dormia à porta de um prédio junto ao edifício dos correios. Vi-o novamente, desta vez, sentado ao sol, igualmente enrolado, à porta de uma papelaria. Preenchia um papel com números, escritos a lápis. E o lápis estava tão pouco afiado que os números eram enormes no papel que ele tinha na mão.

Diariamente, abre o mercado no centro da cidade. Várias mesas expostas num espaço aberto, embora tapado com placas de plástico, juntam todos os tipos de legumes, frutas, flores, mas também chinelos, cuecas do tamanho do mundo, maços de tabaco, tampas para panelas, panos da louça, toalhas de renda e molas para cabelo com tanto pó que a cor era diferente.

Era a única mesa na qual o sol batia. O senhor vendia apenas laranjas e couves. Passou o tempo a cortar limões, com umas mãos enormes e uma nódoa negra nas costas da mão esquerda. Pedi para tirar fotografia e num dos momentos, que perdi por segundos, ele acenou com o pano onde limpava as mãos.

Laranjas e clementinas foi o que mais comi durante a viagem. Comprei laranjas em todos os mercados onde fui. Óptimas.

O mercado diário de Sarajevo.

Os chinelos à venda numa bancada ligeiramente fora do espaço do mercado. Tive autorização para tirar a fotografia e a senhora, ainda que possa não parecer, sorriu quando agradeci.
Pedi para tirar foto aos ananases dentro de um vaso, à venda no mercado. O rapaz tirou-os do vaso e posicionou-os para a fotografia.

Aquele que se poderia imaginar ser o trabalho de uma florista - fazer pequenos raminhos - era o trabalho de um rapaz, a trabalhar para o chefe (o dos ananases).


Bamija é um prato bósnio que experimentármos num restaurante, no dia anterior a termos percebido em que é que consistia. É um prato com carne e okra, uma espécie de pequenos frutos, com uma têxtura áspera. Mal viamos o que estávamos a comer no início do jantar, mas a meio desistimos.

O prédio abandonado por onde passámos de camioneta várias vezes e que despertou a minha curiosidade em vários momentos...

... devido ao sofá abandonado num dos andares.

Os três sapatos numa mesa tentavam atrair clientes para a sapataria que estava recuada em relação à rua principal.

Os restos dos cartazes publicitários e das campanhas eleitorais.

Os heróis.

O dia-a-dia da cidade, com água a ferver e as vassouras utilizadas em todo o lado.

Os contrastes que se vêem na cidade.

A razão que me fez ir à BiH e a razão que me levou a apaixonar-me pela complexidade do país.

O guarda-chuva.

Em qualquer porta de um prédio em Sarajevo.

Como em qualquer outra cidade europeia.
As ruas de Sarajevo, sempre com as colinas como fundo.




A vida diária no bairro turco.

Uma das lojas onde se acumulam bocados de tudo, com as suas devidas histórias.

Não conseguimos comunicar, nem perceber o que ambos fazemos na vida.

A exposição de panelões como se fosse algo comprado diariamente por toda a gente. Pensei seriamente na paciência de alguém que todos os dias expõe os panelões à porta da loja e os retira ao fim do dia.

A entrada para um dos espaços com esplanada, rodeados por pequenas lojas.



O bairro turco.
Os contrastes. Homens na rua durante o dia todo.

Parte de uma geração que partilha muitos dos mesmos problemas.

A Praça dos Pombos, como passou a ser conhecida, logo pela manhã de sábado, com três horas de sono, neblina nas colinas, sol morno e o começo do dia.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Ćevapi, o que de melhor se come nos Balcãs.

Das melhores recordações da viagem.

Jaquinzinhos e um copo de vinho, no melhor onde se possa comer: uma tasca croata.
Nos próximos seis meses, Al-Jazeera fará parte do meu vocabulário, leituras e discussões. Motivação é a palavra certa para descrever o que sinto em relação à minha futura tese.

quarta-feira, 16 de março de 2011

A mais pequena caixinha



Queria comprar alguma coisa barata, algo suficientemente especial para o qual pudesse um dia mais tarde olhar e lembrar-me desta viagem. Entrei numa minúscula loja em Sarajevo, com duas mesas à porta repletas de pulseiras, espelhos, caixas de cigarros, brincos. As mesmas coisas em quase todas as lojas. Resolvi entrar. Um casal novo ocupava a única mesa baixa dentro da loja, como se fosse um espaço para crianças de tão  baixas e pequenas que eram as cadeiras. Uma miudinha loura pintava desenhos sentada ao colo do pai. A loja tinha várias prateleiras de vidro, preenchidas com mais colares, caixas, pulseiras. No meio de uma das primeiras prateleiras para onde olhei, vi aquilo que viria a ser a melhor e quase única compra durante os onze dias de viagem. Uma caixinha quadrada, com pouco mais de um centímetro de lado. Baixinha, de metal, toda trabalhada e na tampa uma pedrinha branca. Não hesitei e trouxe-a. Custou-me três marcos, algo com um euro e meio. Embrulharam-na num saquinho azul, brilhante, igualmente pequeno. E para que não se estragasse enfiei o saquinho no meu porta-moedas. A minha caixinha  - para a qual olhei várias vezes durante a viagem – foi motivo de discussão sobre como as mulheres gostam das coisas que menos utilidade têm. Fui questionada por todos os membros masculinos da turma sobre o que é que eu tencionava pôr lá dentro. Até que alguém me ajudou a provar que cabem perfeitamente uns dez brincos dos pequeninos. Foi a compra que mais feliz me fez nos últimos tempos. E já expliquei que, para mim, tem carácter suficiente para ser peça central e única da decoração de uma grande mesa.

A máquina de costura

Era como se estivesse em Lisboa. As pessoas olham umas para as outras na rua, senti-me próxima, não estranha. Foi o último dia em Sarajevo e o cansaço da semana inteira de emoções, opiniões e debates encaminhou-nos a todos para a parte antiga da cidade, o bairro turco. Ponto central na cidade, muito perto do nosso hotel, repleto de pequenas lojas e cafés, vivo de manhã à noite. Dia de sol, com a mesma luz que encanta quem visita Lisboa num dia de esplanadas, passeios, conversas leves e caras aquecidas. Fomo-nos todos cruzando nas ruas, entrando e saindo das lojas, partilhando o que comprávamos, até nos termos sentado numa esplanada, chão de pedras redondas, mesas de plástico verdes, numa espécie de pátio interior. Bebemos café ao sol.
Como o cansaço me evade das conversas, dei conta das  lojas que nos rodeavam. Entre elas, uma modista. Um espaço minúsculo com uma montra com quadrados de vidro divididos por madeira. A porta era também de madeira. Cheguei mais perto, só uma senhora lá estava, sentada em frente a uma máquina de costura antiga, com os óculos na ponta do nariz. Entrei, ouvi o som ritmado da agulha e perguntei se podia tirar uma fotografia à máquina de costura. Lembro-me que a minha avó tinha uma em casa, era motivo de curiosidade pois o tampo da mesa virava ao contrário e a máquina desaparecia. Ela encolheu os ombros. ‘Não?’, perguntei-lhe. Voltou a encolher os ombros. Baixei-me e tirei uma foto à máquina de costura. ‘Français?’, ouvi. Disse que sim, levando-a a pedir-me a razão para querer uma fotografia. Expliquei-lhe que a minha avó tinha tido uma máquina daquelas em casa. Num instante ela mudou, sorriu amavelmente, acenou com a cabeça e disse que estivesse à vontade. Perguntou que idade tinha a minha avó e continuou o trabalho dela, fazendo conscientemente parte da fotografia. Mostrei-lhe as fotografias, e ela abanou a cabeça. ‘É assim que vejo como estou a ficar velha’, disse em francês. A conversa foi-se fazendo aos poucos, relembrando palavras à medida que se tornavam necessárias. Entendíamo-nos entre frases cortadas, aprendíamos o sentido das meias palavras. Disse-me ter duas filhas, uma delas estudou gestão na Malásia. Expliquei-lhe que estudava e trabalhava, e o telefone dela tocou. Manteve-se sentada na cadeira, de frente para a máquina de costura antiga de ferro verde. Percebi que tinha estado a coser um blazer castanho. Enquanto ela falava ao telefone, reparei em todo o restante espaço. Um pequeno recanto para experimentar a roupa com uma cortina aberta, um espelho alto numa parede, uma prateleira com livros amontoados, caixas de plástico com linhas de várias cores, um móvel muito pequeno encostado a uma parede com dois napperons de renda e um grande rádio ligado, embora só se ouvisse conversa e não música. Havia ainda um vestido pendurado na parede e uma única flor de pé alto dentro de um copo. No meio da loja estava um aquecedor a gás. Ouvi-a a dizer o que me pareceu ser ‘turista’ e fiquei com a ideia que estaria a falar de mim ao telefone. Nesse mesmo instante, passou-me o telemóvel para a minha mão, pedindo que falasse com a filha. Sem sequer saber em que língua deveria falar, agarrei no telefone e, do outro lado, uma rapariga falou-me em inglês. ‘A minha mãe trabalha aí e disse-me que estavas a tirar fotografias. Pediu-me que lhe enviasses as fotografias, se for possível’. Deu-me o email, que apontei num bocado de papel amarelo, parte de um grande rolo utilizado nas costuras da senhora. A partir desse momento, pousou o blazer castanho, deixou o trabalho e alargou-se a conversa.
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Hesitou por uns momentos antes de se levantar, mas levantou-se, dando dois passos até tirar a carteira. Abriu-a e mostrou-me a fotografia da filha com quem falei, sem dúvida parecida com a mãe, e lamentou não ter uma fotografia da outra filha, sem aprofundar a razão. Mostrou-me o marido numa fotografia onde apareciam os dois lado a lado e ainda uma só com a cara da mãe. Nasceu na Albânia e viveu no Kosovo. Trabalhou numa organização internacional, como economista, onde aprendeu a falar francês com as colegas de trabalho. ‘Entretanto nunca mais falei e perdi o francês’. Veio viver para a Bósnia e Herzegovina, para Grbavica, um bairro em Sarajevo, onde vivia a mãe e onde viriam a estar durante a guerra. Falou lentamente, num esforço para se lembrar das palavras certas, fechando os olhos de cada vez que a memória a impedia de se expressar. Eu também reduzia o meu vocabulário a quase nada, apenas o essencial. Encostou os dois cotovelos na mesa e apoiou a cara nas mãos. ‘Tivemos fome e frio, as minhas filhas tinham seis e oito anos, evitávamos sair de casa’, disse-me sobre o tempo em que viveu a guerra em Sarajevo. ‘Nunca mais voltei a Grbavica, nunca consegui’. Perguntei o que achava da cidade hoje. Sorriu, levou as mãos aos olhos, levantou-se novamente e aproximou-se da prateleira com os livros. Tirou um  e encostou-se a uma mesa  a folheá-lo. Não percebi e continuei a tentar absorver tudo o que envolvia aquele espaço, até ela ter fechado o livro com força e eu ter percebido que era um dicionário bónsio-francês.‘Vie! Ma vie c’est Sarajevo’. E não era preciso dizer mais. Acrescentou no entanto como a situação é difícil, ‘l’économie est morte’, como a esperança de melhoria é nenhuma e como o melhor a fazer é ‘continuar a trabalhar para esquecer os problemas’. Lembrei como parecia tão simpático ter aquela enorme montra, podendo ver as pessoas a passar. ‘Tenho sempre o rádio ligado numa estação croata, é a minha companhia’. Contou-me ainda como a blusa de seda branca na montra tinha mais de sessenta anos, tinha sido apenas usada pela mãe dela. Disse-lhe que voltaria em breve a Sarajevo e que passaria ali. ‘Vejo-a daqui a quatro meses então, é?’. Confirmei e abri a porta para me ir embora, depois de agradecer. Ela disse-me como tinha sido interessante conversarmos e, pela última vez, fechou os olhos para se lembrar de uma palavra. Esperei e, com a intensidade de quem encontra o que procurava, ouvi-a dizer: ‘Merci beaucoup!’.