terça-feira, 31 de maio de 2011

For once, in English

Less than two weeks before leaving, I realise that I owe some words in other language. For the first time, I know you will read me with no doubts, with no weird internet translations that are able to completely destroy what is written. For almost one year, I struggled to express myself in English exactly as I would do in the language I speak almost since I was born.  That language that has become my job, the same language that allows me to describe the world as I see it,  with all the details, the colors, the smells and with all the mixture of sensations and feelings that become deeply linked with each moment. The same language through which I lived my childhood, I learnt the first songs, the first words. The language that I am able to speak fast, so fast as you do, the language in which I do not mix a ship and a sheep and, for sure, I never mix living and leaving. Indeed, this is the best I have learnt:  to leave and to live. I understood that I had to leave to be able to live more. For a few months, leaving meant getting out of my home. Now, leaving means getting back home. But I know I lived and I know I learnt. How could I ever imagine a sheep swimming in the river with carnations, celebrating a revolution? I had to come here to have this picture in my head. Beyond that, there is one more thing I have learnt: in a different language, maybe you are not exactly the same person. Of course inside it is the same. But what comes out is not: the reactions, the often too-long silence, the wrong tone, the wrong verb tense. Sometimes, that was not me. How many times my 'no' or 'yes' meant 'not now', 'maybe later' or 'I know I won't be able to say exactly exactly what I want to say'. As a special friend told me, 'So it means I met you more vulnerable'. That is true. And if I look back now, I praise every second, every hesitation and everytime I smiled alone after realising what I had said. Maybe the other me would have said more, but for sure would have smiled less. All this to say: thank you.

sábado, 28 de maio de 2011

Coração à direita, pó e tangerinas



Os oito desenhos em folhas A3 estavam pendurados num quadro. Em cada um deles havia um coração no lado direito do peito. E em cada um deles o interior do corpo humano era diferente. Um papel escrito a computador explicava que naqueles desenhos as crianças tinham desenhado o que achavam ser o corpo humano. Num cartaz ao lado estava o corpo humano a sério, com os nomes de todas as entranhas e ossos. Estávamos as três sentadas em cadeiras de escola, com o rabo a vinte centímetros do chão e os joelhos quase à altura dos ombros. O vento era assustador, a chuva impedia que víssemos para lá de uns duzentos metros. Das janelas da escola primária dava para ver o topo dos arbustos mais frágeis a tocar o chão, os brinquedos perdidos a ir contra os passeios e um tanque cheio até transbordar. Na estrada junto à entrada da escola, no meio do nada, os carros acumulavam-se numa fila. Aqueles que decidiam não esperar davam meia volta e regressavam por onde tinham vindo. O vento de mais de cento e quarenta quilómetros por hora tinha deitado a baixo sete árvores na mesma estrada. Não tínhamos para onde ir, os nossos planos de chegar à ilha de Skye tinham vindo a ser destruídos nas últimas duas horas, em que tentámos em vão encontrar alternativas para as estradas cortadas pelas árvores. Os faróis dos carros em sentido contrário avisavam-nos da impossibilidade de seguir caminho por ali. Entre chuva e vento medonho, abríamos as janelas e percebíamos que por ali também não dava. Sem sítio para onde ir, parámos no primeiro e único slugar fora da estrada. Perceberíamos mais tarde que era uma escola primária, onde os alunos estavam todos à espera do autocarro que não chegaria tão cedo. 

Para além dos desenhos nas paredes, havia um grande caracol vivo dentro de um aquário, um canto para leitura, uma casinha improvisada no meio da sala com um toldo de jardim, um cesto pendurado no tecto com utilidade desconhecida e um canto com jogos de palavras. Deram-nos tangerinas e palitos de bolacha com chocolate. A professora ia colando legendas nos caixotes com materiais, enquanto nos contava mais sobre a vida dela, os alunos, a escola. Contou-nos viver a mais de trinta milhas dali e que todos os alunos moravam a umas cinco milhas da escola, todos em direcções diferentes. O vento continuava assustador, os carros parados em fila. Por instantes olhávamos umas para as outras para termos a certeza de que tudo estava mesmo a acontecer. Por fim, disseram-nos que não iamos conseguir ir longe. A maior árvore levaria uma noite para ser tirada do caminho. 

Uns quinze minutos separaram a sensação de não termos onde dormir da euforia ao espreitar para cada um dos quatro quartos e magníficas salas da casa onde viríamos a ficar uma noite, sem electricidade. Perdido no meio de Stirlingshire, existia um amontoado de casas para alugar, viradas para um lago, rodeado de relvados com ovelhas e vacas. E no meio das pequenas casas, uma enorme casa. A dona, mãe de uma das alunas da escola, nova, com cabelo encharcado pela chuva e as mãos sujas de cortar árvores, ofereceu-nos a casa por um preço mais baixo do que aquele que teríamos pago no nosso hostel em Skye. Veio ter connosco na sala onde comíamos tangerinas. Estendeu-nos a mão cheia de pó, ao que respondi com uma mão peganhenta com sumo de tangerina. Naquele momento, nada interessava. Disse-nos em velocidade que podíamos ficar na casa dela, que pensássemos um bocado e disséssemos se queríamos. Não tinhamos qualquer outra alternativa, aceitámos. E antes que saíssemos da escola e seguíssemos o carro dela, agradecemos a quem nos acolheu por mais de meia hora no meio da maior tempestade dos últimos meses. 

A casa tinha uma espécie de varanda envidraçada, virada para um enorme relvado onde as ovelhas, alheias a qualquer tempestade, comeram erva desde que chegámos até que adormecemos. Esperámos que a electricidade voltasse, o que nunca chegou a acontecer. Comemos as nossas sandes, embrulhados em todos os cobertores das dez camas que a casa tinha, resistindo aos seis graus. A luz do dia durou até às 23h, altura em que percorremos a casa com velinhas pequenas até nos afundarmos nas luxuosas camas. 

O dia seguinte levar-nos-ia até à ilha de Skye, onde as estradas para dois carros têm a largura de um estreito. A chuva foi quase permanente, a temperatura desceu a quatro graus, tivemos granizo, gelo, frio, sol, arco-íris. Voltei a vestir o mesmo que vesti quando nevou em Dezembro, voltei a ter os pés encharcados e meias ensopadas, voltei a ter de usar secador depois de lavar o cabelo, enrolar-me em cachecóis. A ilha de Skye vale pelas paisagens e valeu pela estrada que liga a costa este à costa oeste, cortando a paisagem a meio, mas sem casas, sem nada para lá de um risco no meio de montanhas e vales.

Dos três dias de viagem e dos mil e setenta quilómetros, guardo a intensidade das paisagens e as emoções extremas que mudaram à mesma velocidade a que muda o tempo na Escócia.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Um dia volto para me vir buscar

Dou comigo de olhos abertos, tão abertos como se tivesse acabado de acordar, em vez de estar a tentar adormecer. Percebo que o tecto do quarto tem uma forma cujo nome desconheço e que a luz  da rua se reflecte directamente nele. Na cortina branca, como se fosse a pálpebra da janela, vejo a forma triangular do telhado da frente, tal e qual como a primeira casa que terei desenhado em papel. Um triângulo por cima de um quadrado e uma chaminé,  que não era mais do que um rectângulo pequenino pousado num dos lados do triângulo. Pela janela da casa da frente só uma vez vi um homem que arranjava cortinas e levantava caixotes.  A senhora que lá vive sozinha, quase cega segundo se diz,  deve manter-se no andar de baixo. A janela até tem uma cortina branca com umas rendas, levemente transparente, mas nunca sei bem se o que vejo é o que existe lá dentro ou se é o meu próprio reflexo. Ao contrário dos reflexos no tecto, reconheço o silêncio das noites. Só é pontuado por grupos de gente de regresso a casa, mais felizes do que quando terão passado de manhã em sentido contrário, no silêncio de uma chávena de café.

Ainda estou com os olhos abertos, mais abertos até, como se tivesse por uns instantes avançado no tempo e sentido o que ainda não senti. É como se antecipasse um vácuo,  aquele que imagino vir a sentir. Uma sensação de eu já não ser o que era antes, mas também de já não ser o que fui aqui. Então talvez reste reconstruir-me. Vou lembrar-me do chiar do portão a abrir. E  o chiar do portão a fechar que durante muito tempo pensei ser o tilintar da buzina de uma bicicleta em velocidade ao saltar do passeio para as pedras. Só mais tarde vim a associar esse som ao fechar do portão que agora já sei ser seguido de um tac-tac-tac. Encontrei-o um dia quando vinha de regresso a casa.  Lembro-me que nesse dia estava cá em casa a actriz que usava dois relógios, a mesma que fez de Kate numa peça de teatro sobre cinco irmãs irlandesas. "One is mine, the other is Kate's", disse. Mas  então, nesse mesmo dia conheci-o na rua. O senhor caminhava no mesmo sentido que eu, uns metros mais à frente. Parou e voltou atrás. 'Poderia explicar-me como é que aquela jovem anda com aqueles sapatos?', perguntou-me, levantando a bengala sem borracha no fundo e apontando para uma jovem  de sapatos-agulha a quem eu tinha dado passagem no estreito passeio liso. Apontei para os meus sapatos rasos e disse-lhe que também não sabia. Ele seguiu o seu caminho e antes que eu abrisse a porta, percebi: era ele quem abria e fechava  o portão, gerando o tac-tac-tac da bengala sem borracha contra o passeio liso. 

Também sei que ao fundo da rua se sente o cheiro das batatas,  são sempre fritas de porta aberta. À porta desse Fish&Chips, dois patos selvagens, pouco voadores, passam os dias chafurdando em duas pocinhas de água que eles próprios criam, ao entornar propositadamente as taças de plástico que alguém lhes enche. Também sei o cheiro dos livros velhos no alfarrabista.  Aliás, há muito tempo que não passo lá, talvez desde que dei ao dono um marcador de livros de Fernando Pessoa, com uma citação traduzida. Lembro-me que lhe dei o envelope com o marcador lá dentro quando o vi a desatar o nó do cartaz rudimentar --  só diz 'Bookshop' escrito à mão -- que  eleata todos os dias à tabuleta  de sentido proibido colocada no início da rua. 

Também conheço a campaínha, sei quando é o carteiro ou quando são visitas. Se é mais curto e rápido é o carteiro do costume, o que empurra o carrinho com velocidade e bebe Irn Bru todos os dias. Se é longo, então é uma das velhinhas de movimentos lentos e vida sossegada. Se toca duas vezes é a neta adolescente. Se toca durante a noite, e seguido de risos, são os que estão nos seus felizes regressos a casa.

Da última vez que dei conta que ainda tinha os olhos abertos foi quando percebi que vou ter de me deixar cá. Mando os livros, levo as malas e um dia volto para me vir cá buscar.


segunda-feira, 16 de maio de 2011

E é assim que depois de oito meses, de dezenas de livros, de centenas de horas de leitura, de 25.000 palavras em ensaios, de apresentações e aulas, de histórias de guerras e soluções para conflitos intermináveis, de apresentações e seminários,  termino o meu último exame.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

E agora que gosto de jantar com luz do dia estou a um mês do fim.