Voltei a ter um momento para respirar. Há tempo que não o tinha, tudo se atropelava: ensaios e artigos, aulas, encontros, trabalhos fora da faculdade, prazos, frustração, ansiedade, poucas horas de sono. Junto a isso surgia, leve, levemente, uma dúvida sobre a decisão que tomei. Por que razão vim? É fácil não duvidar das decisões quando correm bem. Mas, num segundo, perde-se essa capacidade. E apaga-se a vontade de descrever cada pormenor. Depois disso, pequenos momentos começam a acenar bem lá ao fundo. Emerge-se e volta a resposta: não quiseste mais do que conforto? Aqui o tens.
A semana que passei no Luxemburgo foi uma ajuda para recuperar a sanidade. Senti-me em Portugal. Em qualquer esquina, encontra-se alguém que fale português e, como bom compatriota, essa ligação é sinónimo de ajuda. Seja para conseguir alguma coisa mais depressa, mais barata, com melhor qualidade,seja para partilhar alguns minutos de conversa sobre como era e como é a vida 'lá em baixo' e 'cá em cima'. Fala-se sobre os 1600 euros de salário mínimo para pessoas 'com curso', e dos 1300 euros para pessoas 'sem curso'. Fala-se sobre como 'ao fim do mês ainda dá para ir passear, coisa que lá em baixo é impossível porque o dinheiro nem ao fim do mês chega'. Sugerem-se soluções: '0 governo deveria preocupar-se mais com as pessoas'. E até surgem sugestões das raparigas portuguesas no Luxemburgo, perante qualquer lamentação: 'olha, tenho amigas portuguesas que vieram para o Luxemburgo só para ter dois ou três filhos, sem terem de trabalhar'.
Num dos dias dessa semana, no hotel onde fiquei, cruzei-me no corredor com uma senhora portuguesa responsável pela limpeza dos quartos, uma de muitas tarefas. Junto de um armário, encostado a uma parede, ela tirava e arrumava toalhas. Perguntei-lhe há quanto tempo estava no Luxemburgo, há quanto tempo trabalhava ali, como tinha vindo. Explicou-me parte da vida dela, descreveu-me como ali é possível 'dar aos miúdos tudo: playstations, telemóveis, televisões'. Isso dito sem qualquer pretensão, apenas como reflexo da liberdade que um salário maior ao fim do mês pode dar. 'Cada vez que vou lá a baixo vejo raparigas de 25 ou 30 anos que parecem velhas. Andam tristes e não se arranjam. Mas percebi não se arranjam porque não têm dinheiro. É triste'. Falava com uma certa angústia - ou, tão melhor conceito, saudade - em relação ao que fica em Portugal. Não era orgulho ou vaidade. Viver no Luxemburgo resulta apenas de uma razão: procura de uma vida melhor que ali conseguiu encontrar. E voltar para Portugal passa a ser uma meta muito distante. Acabámos por conversar muitas outras vezes durante a semana. Conheci a filha dela que, com nove anos, fala cinco línguas. Entre o muito trabalho dos meus dias, tive-a ao meu lado, sentada a falar um português perfeito, a ensinar-mee palavras em luxemburguês (só me lembro de kanichen, coelho), enquanto pintávamos. Sim, porque para além da escrita do meu ensaio sobre 'conflict management' e da cobertura da competição de culinária, ia pintando as jardineiras de um pescador ou o corpo de uma foca. Deu-me dezenas de rebuçados, que desembrulhava e me obrigava a comer sem parar, e até me prometeu que faltaria às aulas nessa semana, dando a desculpa de que estava com tosse. Por erro da minha parte - ou por incapacidade para corresponder a tanto - acabei por não me despedir dela. Quando me voltei a cruzar com a mãe , percebi que tinha provocado aquilo pelo qual tantas vezes, mais nova, passei. As primeiras grandes desilusões, trazidas pela sensação de que um dia temos alguém que nos dá uma atenção especial e que, sem percebermos, no outro dia desaparece. Talvez por isso, escrevi-lhe um pequeno papel. E no último dia antes de deixar o Luxemburgo, cruzei-me novamente com a mãe no corredor. Quis despedir-me e ela chorou. 'Não gosto de despedidas', disse-me, junto ao mesmo armário das toalhas, fazendo-me pensar em como se vivem as despedidas de forma tão diferente quando se está longe. Fui caminhando pelo corredor, sem sequer pensar, só para evitar vê-la chorar, enquanto agradecia e dizia que por certo não seria uma despedida. 'Voltaremos a ver-nos', lembro-me de dizer. E ainda a ouvi acrescentar baixinho: 'ainda para mais anda sozinha por esses países'.
E ainda antes de regressar à Escócia, em conversa com um chef americano - depois de o ver trabalhar com os chefs portugueses durante cerca de 18 horas por dia durante uma semana - comentei: 'é preciso gostar incrivelmente disto para passar a vida numa cozinha'. Acenou que sim, sem parar o que estava a fazer. E disse-me: 'You lose many people in your life when you choose this'. Incrivelmente também, percebi que aquela resposta tinha muito sentido. 'If you love this and you take this decision, you will have one moment in your life when you stop and you regret all the people you have lost. But, if you love this and you do not take this decision, you will spend your entire life regretting what you have lost and what you are still losing'.
A semana que passei no Luxemburgo foi uma ajuda para recuperar a sanidade. Senti-me em Portugal. Em qualquer esquina, encontra-se alguém que fale português e, como bom compatriota, essa ligação é sinónimo de ajuda. Seja para conseguir alguma coisa mais depressa, mais barata, com melhor qualidade,seja para partilhar alguns minutos de conversa sobre como era e como é a vida 'lá em baixo' e 'cá em cima'. Fala-se sobre os 1600 euros de salário mínimo para pessoas 'com curso', e dos 1300 euros para pessoas 'sem curso'. Fala-se sobre como 'ao fim do mês ainda dá para ir passear, coisa que lá em baixo é impossível porque o dinheiro nem ao fim do mês chega'. Sugerem-se soluções: '0 governo deveria preocupar-se mais com as pessoas'. E até surgem sugestões das raparigas portuguesas no Luxemburgo, perante qualquer lamentação: 'olha, tenho amigas portuguesas que vieram para o Luxemburgo só para ter dois ou três filhos, sem terem de trabalhar'.
Num dos dias dessa semana, no hotel onde fiquei, cruzei-me no corredor com uma senhora portuguesa responsável pela limpeza dos quartos, uma de muitas tarefas. Junto de um armário, encostado a uma parede, ela tirava e arrumava toalhas. Perguntei-lhe há quanto tempo estava no Luxemburgo, há quanto tempo trabalhava ali, como tinha vindo. Explicou-me parte da vida dela, descreveu-me como ali é possível 'dar aos miúdos tudo: playstations, telemóveis, televisões'. Isso dito sem qualquer pretensão, apenas como reflexo da liberdade que um salário maior ao fim do mês pode dar. 'Cada vez que vou lá a baixo vejo raparigas de 25 ou 30 anos que parecem velhas. Andam tristes e não se arranjam. Mas percebi não se arranjam porque não têm dinheiro. É triste'. Falava com uma certa angústia - ou, tão melhor conceito, saudade - em relação ao que fica em Portugal. Não era orgulho ou vaidade. Viver no Luxemburgo resulta apenas de uma razão: procura de uma vida melhor que ali conseguiu encontrar. E voltar para Portugal passa a ser uma meta muito distante. Acabámos por conversar muitas outras vezes durante a semana. Conheci a filha dela que, com nove anos, fala cinco línguas. Entre o muito trabalho dos meus dias, tive-a ao meu lado, sentada a falar um português perfeito, a ensinar-mee palavras em luxemburguês (só me lembro de kanichen, coelho), enquanto pintávamos. Sim, porque para além da escrita do meu ensaio sobre 'conflict management' e da cobertura da competição de culinária, ia pintando as jardineiras de um pescador ou o corpo de uma foca. Deu-me dezenas de rebuçados, que desembrulhava e me obrigava a comer sem parar, e até me prometeu que faltaria às aulas nessa semana, dando a desculpa de que estava com tosse. Por erro da minha parte - ou por incapacidade para corresponder a tanto - acabei por não me despedir dela. Quando me voltei a cruzar com a mãe , percebi que tinha provocado aquilo pelo qual tantas vezes, mais nova, passei. As primeiras grandes desilusões, trazidas pela sensação de que um dia temos alguém que nos dá uma atenção especial e que, sem percebermos, no outro dia desaparece. Talvez por isso, escrevi-lhe um pequeno papel. E no último dia antes de deixar o Luxemburgo, cruzei-me novamente com a mãe no corredor. Quis despedir-me e ela chorou. 'Não gosto de despedidas', disse-me, junto ao mesmo armário das toalhas, fazendo-me pensar em como se vivem as despedidas de forma tão diferente quando se está longe. Fui caminhando pelo corredor, sem sequer pensar, só para evitar vê-la chorar, enquanto agradecia e dizia que por certo não seria uma despedida. 'Voltaremos a ver-nos', lembro-me de dizer. E ainda a ouvi acrescentar baixinho: 'ainda para mais anda sozinha por esses países'.
E ainda antes de regressar à Escócia, em conversa com um chef americano - depois de o ver trabalhar com os chefs portugueses durante cerca de 18 horas por dia durante uma semana - comentei: 'é preciso gostar incrivelmente disto para passar a vida numa cozinha'. Acenou que sim, sem parar o que estava a fazer. E disse-me: 'You lose many people in your life when you choose this'. Incrivelmente também, percebi que aquela resposta tinha muito sentido. 'If you love this and you take this decision, you will have one moment in your life when you stop and you regret all the people you have lost. But, if you love this and you do not take this decision, you will spend your entire life regretting what you have lost and what you are still losing'.
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