quarta-feira, 8 de junho de 2011

A última linha de Cascos

É como os segundos depois de terminar a última linha de um livro. O mundo suspende-se nos instantes em que é digerido o último fôlego, as últimas impressões. Há uma sensação de estar perdida por não haver mais a seguir. Acabou. Antes de conseguir fechar o livro e pousá-lo, mantenho sempre a página aberta por mais um tempo, agarrando a sensação por mais uns minutos, fugindo de o ter de fechar e seguir. Nesses instantes, nunca releio essa linha, nem as anteriores. Não gosto de dobrar histórias, de sentir que me faltaram pormenores, de que afinal não foi bem como tinha ficado a pensar que era. Foi o que li. Resta-me olhar para o espaço em branco, antes de realmente o fechar e de tentar em vão devolvê-lo à sua forma original, com a contracapa já mais próxima da última página.
Estes segundos são o mesmo que estes últimos dias. Uma espécie de digestão dos últimos fôlegos. Da última festa, vim com todas as promessas de um dia nos encontrarmos sabemos lá nós onde, com os desejos de irmos juntos à Índia, de trabalharmos na Indonésia, de escrever a partir do Congo. Despedi-me de quem parte para o Afeganistão ou para o Bangladesh. Mas este é também o dia em que conscientemente esvaziei as minhas gavetas. Sei agora que me vou lembrar de o ter feito, vou lembrar-me que ter posto estes meses em caixas. Falta-me  tocar às portas de quem fez parte deste tempo, deixar os últimos abraços depois dos apertos de mãos. E fica-me a faltar uma só despedida: da senhora que me deixou em desespero em tantos momentos, que me obrigou a respirar fundo, a mesma com quem vi o Black Swan enquanto comia pipocas tamanho kid, que me ensinou o nome das plantas em inglês, que me perguntava as mesmas coisas várias vezes, que me contava as mesmas histórias várias vezes, a  mesma que me pediu que a ensinasse a utilizar um telemóvel, a encomendar um livro na Amazon, a levar o ipod no comboio para poder ouvir música, a mesma que me ensinou a fazer brownies, que me tentou convencer que é possível conseguir dinheiro se o pedirmos insistentemente. A mesma que me abraçou quando cheguei em setembro sem ter a certeza que ela existia, a mesma que comprou o jornal todos os dias durante oito meses para eu poder estar a par das notícias, que me trouxe copos de cristal com vinho chileno e sul-africano, a que me dobrou a roupa porque não tinha nada para fazer ou que deixou meia quiche para o meu jantar no exacto dia em que não teria paciência para comer mais do que pão.
Agarrados os minutos, resta-me escrever a última linha, fechar o livro, e moldar-me - provavelmente em vão - para me devolver ao que era. Com a contracapa colada à última página, assim se chega ao fim.

Há mais cobardes em ser iludidos, do que em ir para a guerra.
Agustina Bessa-Luís

Mr. Bill

Adiava a prometida despedida do alfarrabista, o senhor de camisola de malha por cima de uma camisa de flanela com quadrados. Mas de repente receei já não o ver mais. Ele surgirá sempre aos meus olhos com as suas rosetas vermelho-vivo, cor que se alarga para lá das bochechas quando se envergonha. Até isso temos em comum. Entrei para me despedir, tal como tinha entrado há uns meses atrás para conhecer pela primeira vez a book shop da rua. Estava só ele, no seu cantinho, só lhe vejo um bocadinho do já pouco cabelo alourado. 'Como prometido, aqui estou para me despedir'. E ele levantou-se, já com o vermelho alastrado, perguntou-me pelos meus últimos dias. Respondi-lhe e estendeu-me um postal antigo. Um dos postais perdidos que durante oito meses eu vi dentro dos caixotes, pequeninos, ordenados por países, com histórias que nunca chegaram ao destino, com elogios e  notícias que nunca chegaram a ser ouvidos. Nunca comprei nenhum. E no último dia antes de partir, era exactamente isso que ele me estava a dar. Dentro de uma capinha de plástico. 'É a Market Street que conheces, mas há muitos anos atrás', disse-me.  Virou o postal para me mostrar que tinha já posto o cartão com os contactos da loja, o resto do postal estava em branco. Já não branco de cor, mas por não ter nada escrito. Engoli  em seco, o mais forte que consegui, tentando nem pensar. Trocámos umas palavras e saí. Quando desviei o cartão com os contactos dele, percebi que  afinal tapava uma frase, escrita a lápis no postal: 'Best wishes for the future, Bill'.

terça-feira, 7 de junho de 2011

E o que aprendi em oito meses

A reviver inesperadamente grande parte da minha infância: instantes e episódios dos quais nunca me tinha lembrado, que surgiram aos pedaços, sem sentido. O jardim, as flores, os pássaros; beber chá no jardim, descobrir um ninho num arbusto,  ter a avó que há anos deixei de ter. Percebi que vale a pena mudar, também percebi que é possível que doa mais do que se imagina.
Aprendi a querer ainda menos, a comprar menos, a ver e a imaginar mais. Apercebi-me de que cozinhar cuscuz é barato. Conheci a salada de pepino, presente na minha ementa até há duas semanas atrás, até a coincidência me ter deixado intoxicada e me ter levado a pensar em desespero e isolamento que estivesse a morrer. Lidei com o desespero, respirando fundo e sentando-me no banco de madeira do jardim a ler On Violence da Hannah Arendt, começando pelo parágrafo - 'If you ask a member of this  [younger] generation two simple questions: 'How do you wish the world to be in fifty years?' and 'What do you want your life to be like five years from now?', the answers are quite often preceded by ... 'Provided I am still alive'.
Aprendi a comprar laranjas nos mercados de todas as novas cidades que visito e sentar-me num banco a comê-las, enquanto observo quem passa. Apreendi a Escócia, os hábitos, as opiniões, o sotaque, os comboios e autocarros, as estradas, a condução à esquerda. Aprendi a não me sentar nos bancos centrais dos aviões quando viajo sozinha, pois a única vez que o fiz fiquei entalada por dois bêbados. Aprendi a carregar malas de trinta quilos sozinha, por vezes sem uma roda. Aprendi que é especial estudar numa faculdade onde existem todas as condições, mesmo que rodeada por um ambiente medieval. Percebi que o tempo pode mudar em dois minutos e vi as mais inacreditáveis paisagens. Vi também os meus pés azuis, depois do sangue ter desaparecido quando os dezasseis graus negativos o exigiam. 
Aprendi como existiram e ainda existem jornalistas a sério na Bósnia e Herzegovina (BeH). Como existe uma modista que mudou um dia da minha vida em Sarajevo. Apaixonei-me pela desorganização da cidade. E não só: percebi como os jovens bósnios são fruto de uma das mais interessantes misturas de emoções, revoltas, limitações e aspirações. 
Percebi que os livros que consegui ler, para lá dos da faculdade, estiveram sempre ligados a histórias de gente fora do país onde nasceu. Aprendi a acordar ao som das gaivotas, a conviver com uma toupeira-bebé no jardim e a não reutilizar as saquetas de chá. Consegui fazer quatro ensaios, três exames, duas apresentações orais, escrever sobre as favelas no Brasil, a China em África, a revolta no Iémen quando ainda só estava a começar, os jornalistas na BeH, a reconciliação em Timor-Leste, a verdade em El Salvador, a gestão superficial de Caxemira, as injustiças no Afeganistão. Aprendi a reconhecer portugueses pelo sotaque em inglês e a saber que, por mal que nos conheçamos, havemos de nos juntar a comer bacalhau.
Aprendi a visitar alfarrabistas e a reconhecer os caixotes de cartão com os melhores livros.  Percebi que é possível viver no meio do nada, no norte da Escócia, como me ensinou um casal de escultores americanos, rodeados por um lago, um moinho antigo, esculturas e uma garagem com tantos frascos como o meu avô tinha na dele. Também percebi que o meu avô me marcou, assim como ter ouvido as vozes de quem viveu a guerra em Sarajevo. 
Aprendi que é possível ter amigos com quem partilho a vontade de não ficar, de ir e de querer, de sentir. Com quem partilho, ainda antes de saber, os meus receios, as mesmas dúvidas e as mesmas certezas. Vivi as conversas de horas e horas, de garrafa de vinho, de inglês contorcido, de regresso a casa em linha pouco recta. Partilhei histórias que nunca ninguém teve interesse em ouvir. Ouvi histórias que nunca tinham sido contadas.
Enganei-me, errei e arrependi-me muitas vezes. Desejei voltar para casa, desejei que o tempo passasse depressa e questionei ter vindo. Congratulei-me por ter vindo e desejei que o tempo tivesse passado mais devagar.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Uma semana: antes e depois

Agora que estou a uma semana de deixar isto, voltei atrás ao dia 30 de Setembro. Na altura, no mesmo sítio onde estou hoje, escrevia sobre a minha primeira semana: 

E passou a primeira semana. Num ápice, como se em tudo o que é novo houvesse já uma sensação de familiaridade. Não deixa de ser estranho. Embora tudo me fosse absolutamente desconhecido desde o primeiro minuto, nada doeu. Ou quase nada. Como se me tivesse vindo a preparar para tudo isto nos últimos anos. E de forma muito eficaz, concluo agora. Como se tivesse estado encostada a uma porta fechada, imaginando o que poderia estar do outro lado. 30 de Setembro de 2010
 
Há dois dias atrás sonhei que estava em Portugal, já em casa, com as minhas malas, e que não me lembrava de nada dos meus últimos dias aqui. Não me lembrava sequer de ter tirado a roupa das gavetas. Culpei-me e lamentei-me no desespero de já tudo ter acabado. Quando acordei, senti o alívio não só de afinal ainda cá estar, como de ter percebido a tempo que preciso de viver cada segundo dos últimos dias. E de conseguir recordar um dia o  momento em que esvaziei as gavetas.

terça-feira, 31 de maio de 2011

For once, in English

Less than two weeks before leaving, I realise that I owe some words in other language. For the first time, I know you will read me with no doubts, with no weird internet translations that are able to completely destroy what is written. For almost one year, I struggled to express myself in English exactly as I would do in the language I speak almost since I was born.  That language that has become my job, the same language that allows me to describe the world as I see it,  with all the details, the colors, the smells and with all the mixture of sensations and feelings that become deeply linked with each moment. The same language through which I lived my childhood, I learnt the first songs, the first words. The language that I am able to speak fast, so fast as you do, the language in which I do not mix a ship and a sheep and, for sure, I never mix living and leaving. Indeed, this is the best I have learnt:  to leave and to live. I understood that I had to leave to be able to live more. For a few months, leaving meant getting out of my home. Now, leaving means getting back home. But I know I lived and I know I learnt. How could I ever imagine a sheep swimming in the river with carnations, celebrating a revolution? I had to come here to have this picture in my head. Beyond that, there is one more thing I have learnt: in a different language, maybe you are not exactly the same person. Of course inside it is the same. But what comes out is not: the reactions, the often too-long silence, the wrong tone, the wrong verb tense. Sometimes, that was not me. How many times my 'no' or 'yes' meant 'not now', 'maybe later' or 'I know I won't be able to say exactly exactly what I want to say'. As a special friend told me, 'So it means I met you more vulnerable'. That is true. And if I look back now, I praise every second, every hesitation and everytime I smiled alone after realising what I had said. Maybe the other me would have said more, but for sure would have smiled less. All this to say: thank you.

sábado, 28 de maio de 2011

Coração à direita, pó e tangerinas



Os oito desenhos em folhas A3 estavam pendurados num quadro. Em cada um deles havia um coração no lado direito do peito. E em cada um deles o interior do corpo humano era diferente. Um papel escrito a computador explicava que naqueles desenhos as crianças tinham desenhado o que achavam ser o corpo humano. Num cartaz ao lado estava o corpo humano a sério, com os nomes de todas as entranhas e ossos. Estávamos as três sentadas em cadeiras de escola, com o rabo a vinte centímetros do chão e os joelhos quase à altura dos ombros. O vento era assustador, a chuva impedia que víssemos para lá de uns duzentos metros. Das janelas da escola primária dava para ver o topo dos arbustos mais frágeis a tocar o chão, os brinquedos perdidos a ir contra os passeios e um tanque cheio até transbordar. Na estrada junto à entrada da escola, no meio do nada, os carros acumulavam-se numa fila. Aqueles que decidiam não esperar davam meia volta e regressavam por onde tinham vindo. O vento de mais de cento e quarenta quilómetros por hora tinha deitado a baixo sete árvores na mesma estrada. Não tínhamos para onde ir, os nossos planos de chegar à ilha de Skye tinham vindo a ser destruídos nas últimas duas horas, em que tentámos em vão encontrar alternativas para as estradas cortadas pelas árvores. Os faróis dos carros em sentido contrário avisavam-nos da impossibilidade de seguir caminho por ali. Entre chuva e vento medonho, abríamos as janelas e percebíamos que por ali também não dava. Sem sítio para onde ir, parámos no primeiro e único slugar fora da estrada. Perceberíamos mais tarde que era uma escola primária, onde os alunos estavam todos à espera do autocarro que não chegaria tão cedo. 

Para além dos desenhos nas paredes, havia um grande caracol vivo dentro de um aquário, um canto para leitura, uma casinha improvisada no meio da sala com um toldo de jardim, um cesto pendurado no tecto com utilidade desconhecida e um canto com jogos de palavras. Deram-nos tangerinas e palitos de bolacha com chocolate. A professora ia colando legendas nos caixotes com materiais, enquanto nos contava mais sobre a vida dela, os alunos, a escola. Contou-nos viver a mais de trinta milhas dali e que todos os alunos moravam a umas cinco milhas da escola, todos em direcções diferentes. O vento continuava assustador, os carros parados em fila. Por instantes olhávamos umas para as outras para termos a certeza de que tudo estava mesmo a acontecer. Por fim, disseram-nos que não iamos conseguir ir longe. A maior árvore levaria uma noite para ser tirada do caminho. 

Uns quinze minutos separaram a sensação de não termos onde dormir da euforia ao espreitar para cada um dos quatro quartos e magníficas salas da casa onde viríamos a ficar uma noite, sem electricidade. Perdido no meio de Stirlingshire, existia um amontoado de casas para alugar, viradas para um lago, rodeado de relvados com ovelhas e vacas. E no meio das pequenas casas, uma enorme casa. A dona, mãe de uma das alunas da escola, nova, com cabelo encharcado pela chuva e as mãos sujas de cortar árvores, ofereceu-nos a casa por um preço mais baixo do que aquele que teríamos pago no nosso hostel em Skye. Veio ter connosco na sala onde comíamos tangerinas. Estendeu-nos a mão cheia de pó, ao que respondi com uma mão peganhenta com sumo de tangerina. Naquele momento, nada interessava. Disse-nos em velocidade que podíamos ficar na casa dela, que pensássemos um bocado e disséssemos se queríamos. Não tinhamos qualquer outra alternativa, aceitámos. E antes que saíssemos da escola e seguíssemos o carro dela, agradecemos a quem nos acolheu por mais de meia hora no meio da maior tempestade dos últimos meses. 

A casa tinha uma espécie de varanda envidraçada, virada para um enorme relvado onde as ovelhas, alheias a qualquer tempestade, comeram erva desde que chegámos até que adormecemos. Esperámos que a electricidade voltasse, o que nunca chegou a acontecer. Comemos as nossas sandes, embrulhados em todos os cobertores das dez camas que a casa tinha, resistindo aos seis graus. A luz do dia durou até às 23h, altura em que percorremos a casa com velinhas pequenas até nos afundarmos nas luxuosas camas. 

O dia seguinte levar-nos-ia até à ilha de Skye, onde as estradas para dois carros têm a largura de um estreito. A chuva foi quase permanente, a temperatura desceu a quatro graus, tivemos granizo, gelo, frio, sol, arco-íris. Voltei a vestir o mesmo que vesti quando nevou em Dezembro, voltei a ter os pés encharcados e meias ensopadas, voltei a ter de usar secador depois de lavar o cabelo, enrolar-me em cachecóis. A ilha de Skye vale pelas paisagens e valeu pela estrada que liga a costa este à costa oeste, cortando a paisagem a meio, mas sem casas, sem nada para lá de um risco no meio de montanhas e vales.

Dos três dias de viagem e dos mil e setenta quilómetros, guardo a intensidade das paisagens e as emoções extremas que mudaram à mesma velocidade a que muda o tempo na Escócia.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Um dia volto para me vir buscar

Dou comigo de olhos abertos, tão abertos como se tivesse acabado de acordar, em vez de estar a tentar adormecer. Percebo que o tecto do quarto tem uma forma cujo nome desconheço e que a luz  da rua se reflecte directamente nele. Na cortina branca, como se fosse a pálpebra da janela, vejo a forma triangular do telhado da frente, tal e qual como a primeira casa que terei desenhado em papel. Um triângulo por cima de um quadrado e uma chaminé,  que não era mais do que um rectângulo pequenino pousado num dos lados do triângulo. Pela janela da casa da frente só uma vez vi um homem que arranjava cortinas e levantava caixotes.  A senhora que lá vive sozinha, quase cega segundo se diz,  deve manter-se no andar de baixo. A janela até tem uma cortina branca com umas rendas, levemente transparente, mas nunca sei bem se o que vejo é o que existe lá dentro ou se é o meu próprio reflexo. Ao contrário dos reflexos no tecto, reconheço o silêncio das noites. Só é pontuado por grupos de gente de regresso a casa, mais felizes do que quando terão passado de manhã em sentido contrário, no silêncio de uma chávena de café.

Ainda estou com os olhos abertos, mais abertos até, como se tivesse por uns instantes avançado no tempo e sentido o que ainda não senti. É como se antecipasse um vácuo,  aquele que imagino vir a sentir. Uma sensação de eu já não ser o que era antes, mas também de já não ser o que fui aqui. Então talvez reste reconstruir-me. Vou lembrar-me do chiar do portão a abrir. E  o chiar do portão a fechar que durante muito tempo pensei ser o tilintar da buzina de uma bicicleta em velocidade ao saltar do passeio para as pedras. Só mais tarde vim a associar esse som ao fechar do portão que agora já sei ser seguido de um tac-tac-tac. Encontrei-o um dia quando vinha de regresso a casa.  Lembro-me que nesse dia estava cá em casa a actriz que usava dois relógios, a mesma que fez de Kate numa peça de teatro sobre cinco irmãs irlandesas. "One is mine, the other is Kate's", disse. Mas  então, nesse mesmo dia conheci-o na rua. O senhor caminhava no mesmo sentido que eu, uns metros mais à frente. Parou e voltou atrás. 'Poderia explicar-me como é que aquela jovem anda com aqueles sapatos?', perguntou-me, levantando a bengala sem borracha no fundo e apontando para uma jovem  de sapatos-agulha a quem eu tinha dado passagem no estreito passeio liso. Apontei para os meus sapatos rasos e disse-lhe que também não sabia. Ele seguiu o seu caminho e antes que eu abrisse a porta, percebi: era ele quem abria e fechava  o portão, gerando o tac-tac-tac da bengala sem borracha contra o passeio liso. 

Também sei que ao fundo da rua se sente o cheiro das batatas,  são sempre fritas de porta aberta. À porta desse Fish&Chips, dois patos selvagens, pouco voadores, passam os dias chafurdando em duas pocinhas de água que eles próprios criam, ao entornar propositadamente as taças de plástico que alguém lhes enche. Também sei o cheiro dos livros velhos no alfarrabista.  Aliás, há muito tempo que não passo lá, talvez desde que dei ao dono um marcador de livros de Fernando Pessoa, com uma citação traduzida. Lembro-me que lhe dei o envelope com o marcador lá dentro quando o vi a desatar o nó do cartaz rudimentar --  só diz 'Bookshop' escrito à mão -- que  eleata todos os dias à tabuleta  de sentido proibido colocada no início da rua. 

Também conheço a campaínha, sei quando é o carteiro ou quando são visitas. Se é mais curto e rápido é o carteiro do costume, o que empurra o carrinho com velocidade e bebe Irn Bru todos os dias. Se é longo, então é uma das velhinhas de movimentos lentos e vida sossegada. Se toca duas vezes é a neta adolescente. Se toca durante a noite, e seguido de risos, são os que estão nos seus felizes regressos a casa.

Da última vez que dei conta que ainda tinha os olhos abertos foi quando percebi que vou ter de me deixar cá. Mando os livros, levo as malas e um dia volto para me vir cá buscar.


segunda-feira, 16 de maio de 2011

E é assim que depois de oito meses, de dezenas de livros, de centenas de horas de leitura, de 25.000 palavras em ensaios, de apresentações e aulas, de histórias de guerras e soluções para conflitos intermináveis, de apresentações e seminários,  termino o meu último exame.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

E agora que gosto de jantar com luz do dia estou a um mês do fim.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Mrs. Sen by Jhumpa Lahiri

[...] 
She had brought the blade from India, where apparently there was at least one in every household. "Whenever there is a wedding in the family", she told Eliot one day, "or a large celebration of any kind, my mother sends out word in the evening for all the neighborhood women to bring blades just like this one, and then they sit in an enormous circle on the roof of our building, laughing and gossiping and slicing fifty kilos of vegetables through the night". Her profile hovered protectively over her work, a confetti of cucumber, eggplant, and onion skins heaped around her. "It is impossible to fall asleep those nights, listening to their chatter." She paused to look at a pine tree framed by the living room window. "Here, in this place where Mr. Sen has brought me, I cannot sometimes sleep in so much silence."
Another day she sat prying the pimpled yellow fat off chicken parts, then dividing them between thigh and leg. As the bones cracked apart over the blade her golden bangles jostled, her forearms glowed, and she exhaled audibly through her nose. At one point she paused, gripping the chicken with both hands, and stared out the window. Fat and sinew lung to her fingers.
"Eliot, if I began to scream right now at the top of my lungs, would someone come?"
"Mrs. Sen, what's wrong?"
"Nothing. I am only asking if someone would come."
Eliot shrugged. "Maybe."
"At home that is all you have to do. Not everybody has a telephone. But just raise your voice a bit, or express grief or joy of any kind, and one whole neighborhood and half of another has come to share the news, to help with arrangements".
By then Eliot understood that when Mrs. Sen said home, she meant India, not the apartment where she sat chopping vegetables.
[...]

Jhumpa Lahiri
The Interpreter of Maladies
 

E assim celebramos as nossas revoluções

domingo, 24 de abril de 2011

para onde vais


a um mês e meio de deixar a escócia, percebo que as perguntas mudaram. se antes perguntávamos 'de onde és?', hoje perguntamos 'para onde vais?'. apesar de tudo, continua a ser um orgulho dizer de onde sou, mesmo que a reacção tenha passado de 'waw...portugal!' para 'oh.. portugal'. agora quanto a dar resposta à pergunta mais recente, torna-se um assunto bem mais complicado.

um pintainho e um copo de cristal


não tive um domingo de páscoa. tive um domingo. quase como qualquer outro, com a diferença de saber que para muitos é um dia de família, de almoços e encontros. desta vez, optei então por não fazer parte de nenhuma páscoa, agradecendo o convite da minha senhoria, que sugeriu que eu me juntasse ao spaghetti and meat balls da páscoa da família dela,  que foi também o aniversário da neta mais nova. a mesma miúda com quem passei a tarde há dois dias. a mesma que me desenhou uma fada portuguesa, ou seja, 'with dark hair, red nails and a butterfly on her hat'. a mesma que com um gigante cubo de Rubik na mão me disse: 'adorava que isto tivesse um botão mágico para pôr as peças em ordem', o que me fez pensar como é que aos sete anos já sonhamos com botões mágicos para nos resolverem os problemas. não quis, no entanto, intrometer-me no almoço de família, pois fui eu quem  escolheu sair de casa um ano e, por consequência, estar longe da família. tenho de lidar com isso. 

passei então parte do dia sentada à frente do computador,  na biblioteca, no meio de meninas fashion que passam o tempo a comer cenouras enquanto trabalham. imagino a situação: uma delas, a mais popular de todas as outras, a mais magra e a que decide as modas trouxe uma cenoura.  as outras passaram todas a trazer cenouras para comerem enquanto trabalham, provavelmente sofrendo de dores de cabeça com a fome que as cenouras lhes fazem passar. para além das cenouras, passam pela biblioteca as calças rosadas, verdes ou vermelhas dos meninos do golfe, com sapato de berloque. observados todos os detalhes, consegui acabar o meu ensaio sobre se a china está ou não a desafiar o modelo ocidental de reconstrução em áfrica.  sem mais capacidade para perceber se as cinco mil palavras que escrevi em três dias faziam ou não sentido, imprimi o trabalho e senti-me livre por dois ou três dias. 

comprei um caixa de cuscuz no supermercado, que me dá para três refeições, trouxe um garfo de plástico gratuito que encontrei ao pé dos iogurtes e fui para a praia tentar que o meu domingo se tornasse um dia diferente. uma das praias de saint andrews consegue estar ao nível de muitas em portugal. um extenso areal, contornado por dunas e por uma floresta bem ao fundo. o mar tanto recua que deixa à vista metros e metros de rochas escorregadias, criando pequenas piscinas e lagos.  percebi que por mais que as pesssoas avancem no mar, a água lhes chega sempre aos joelhos, com ondas de vinte centímetros. sentei-me perto das rochas, dando conta do quão pontilhada estava a praia com centenas de pessoas, cães, aventureiros dentro de água, miúdos de galochas nas poças, chineses a  tirar fotografias nas rochas e todas as gaivotas e corvos incomodados por uma presença tão intensa de humanos nas zonas que costumam ser apenas dos pássaros. já não estava o sol que tinha estado de manhã e o céu tornou-se cinzento, mas não estava nem vento nem frio. descalcei-me, percebendo que esse acto passou a simbolizar para mim uma sensação de tremenda liberdade. comi a minha porção de cuscuz, desembuchando-me com a minha garrafa de água, que tinha enchido no chafariz da biblioteca. desde há um tempo que ando com uma garrafa que trouxe de portugal como se, de alguma forma, me fizesse sentir suficientemente longe e simultaneamente perto. 

antes de agarrar num livro, dei conta de um surfista que se aventurou durante trinta minutos em ondas de vinte centímetros. quando o vi a avançar pelas rochas, equipado e decidido, com a sua prancha de surf, pensei que só poderia estar a brincar. estaria ele mesmo a pensar que valeria a pena carregar com uma prancha daquele tamanho para um mar onde, simplesmente, não havia ondas? ele lá foi. o filho da namorada, com uns cinco anos, sentou-se ao meu lado, com um capuz na cabeça por cima de um boné azul. com voz em surdina o miúdo chamava o Jack e acenava, ao ponto de me fazer pena e lhe tentar explicar que talvez o Jack não o estivesse a ver. trinta minutos depois de chafurdar na água com a sua prancha, o Jack voltou a enfrentar as rochas para regozijo do pequeno que finalmente recebeu um aceno do seu herói.

duas horas e três capítulos depois, o frio era demasiado. mesmo assim quatro adolescentes branquinhos aventuraram-se nas águas. o mais gordinho de todos eles era o que corria mais depressa contra as pequenas ondas, delirante. os franzinos deixavam-se para trás. 

regressei a casa e deparei-me com dois coelhos de chocolate na minha mesa, 'a mãe e o filho', assim como um minúsculo pintainho. e um papel, escrito pela menina dos botões mágicos, a agradecer a prenda que lhe dei. e assim se passa o meu domingo, a beber um copo de vinho tinho, 'do bom e caro' como me disseram. e num copo de cristal. ou não seja hoje domingo de páscoa.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Viver no extremo

Ligeiramente atrás

Partilho uma tarde com uma menina de sete anos, que está a aprender a ler. Acho que ela se questiona por que razão eu direi as palavras em inglês de uma forma tão estranha, com erres e 'th's diferentes dos dela. E então olha-me educadamente como quem diz: 'és mais velha do que eu e não sabes falar?'. Por vezes penso que ela é condescendente comigo por pensar que eu terei apenas um ligeiro atraso.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Cedo demais

‘Restrepo’ Director and a Photographer Are Killed in Libya

BENGHAZI, Libya — Tim Hetherington, a conflict photographer who was a director and producer of the Afghan war documentary “Restrepo,” was killed in the besieged city of Misurata, Libya, on Wednesday, and three photographers working beside him were wounded, one fatally, when they came under fire at the city’s front lines.

http://www.nytimes.com/2011/04/21/world/africa/21photographers.html?_r=2&ref=global-home

segunda-feira, 18 de abril de 2011


"CNN films the launch of the missile. Al Jazeera films what happens where it lands."

Josh Rushing

domingo, 17 de abril de 2011

Deve ser isto que se sente

Se os livros nos fazem viajar, também dão a conhecer o que se sente em situações que nos são desconhecidas.


'"You've got an offer. We'll give you one week to decide".
At first I did not believe him. I asked if he was serious, if there was not a second round for me to pass.
"We don't waste time. Besides, I'm in charge of analyst recruiting. I don't need another opinion".
His grip was firm and seemed to communicate to me, in that moment, that Underwood Samson had the potential to transform my life as surely as it had transformed his, making my concerns about money and status things of the distant past.
I walked back to the dormitory later that same afternoon. The sky was a brilliant blue, [...] and I felt something inside me, a sense of pride so strong that it made me lift my head and yell, as much to my own surprise as I am sure it was to the other students passing by: "Thank you, God!". 

in The Reluctant Fundamentalist de Mohsin Hamid

sábado, 16 de abril de 2011

'Fui ver'

Pelo barcos de papel, os desenhos de contornos das mãos, as aguarelas e lápis de cor, as primeiras letras, os livros, as histórias, o jardim e os pássaros que respondem aos assobios, a paciência, a mousse de chocolate, os álbuns, os cantinhos para segurar as fotografias, os versos sabidos de cor. Por tudo isso que este ano descobri continuar a fazer inteiramente parte de mim.

[...]
Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento, com certeza.
Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
Há quanto tempo a não via!
E que saudade, Deus meu!
[...]
Augusto Gil, Luar de Janeiro, 1909


Há minúsculas toupeiras no jardim.

Jornalismo e Guerra na BeH


Escrever cinco mil palavras sobre a viagem à Bósnia e Herzegovina foi uma agradável experiência. Ainda que em formato de ensaio, com menos rigidez, mas respeitando as bibliografias primárias e secundárias, dei comigo a ter um enorme prazer em recordar detalhadamente cada uma das conversas com os jornalistas na Bósnia e Herzegovina, e na Croácia. Um mundo de opiniões, que se cruzam por vezes, e que se afastam noutras. A incapacidade para uma mudança profunda, a sensação de frustração e desmotivação, assim como uma crescente consciência de que as tensões presentes tendem a aumentar. A prevalência da guerra nas primeiras páginas dos jornais, os crimes de guerra como um dos temas que geram tensões, trazem memórias, aprofundam divisões. Resta uma de duas opções, ambas sustentadas por quem as defende. Uma: falar da guerra para conseguir seguir em frente. Outra: parar de falar da guerra para conseguir seguir em frente. A primeira é defendida por quem viveu a guerra, que lembra que esse é o passado, 'o nosso passado', que a guerra 'está inacabada', 'ainda está viva', que é preciso acabá-la e resolvê-la, esclarecer o que aconteceu e que essa é a responsabilidade dos media (cujo papel antes e durante a guerra foi central). A segunda é defendida por quem não viveu directamente a guerra, mas que a continua a viver indirectamente, através de tudo o que os rodeia. É a sensação de uma geração mais nova que conhece o passado, que conhece as emoções que a família lhes passou, que assiste às contínuas divisões, mas que anseia poder seguir as suas vidas para lá disso. E essa geração sofre os mesmos problemas das gerações mais novas de muitos outros países: desemprego, falta de oportunidades, frustração. Sensações essas pioradas com a presença contínua de uma guerra trazida para o presente pela Política; política essa da qual também se sentem distantes e que acreditam ser a responsável principal pelas tensões crescentes. E os media são indirectamente influenciados pelas posições políticas, exacerbando as divisões e reflectindo três diferentes sociedades de informação. Questionados sobre o que esperam do amanhã, a resposta é: 'depende da Política'.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Volta ao mundo numa torrada

Punha manteiga numa torrada quando me lembrei da sala de pequenos-almoços de um dos hotéis nos arredores de Londres, onde fiquei em janeiro. Lembrei-me das duas raparigas russas que tratavam da cozinha, minúscula, num cantinho. Lembrei-me dos indianos, empresários simples, com quem me cruzo nas salas de pequenos-almoços. Não são dos empresários que ficam em hotéis de cinco estrelas no centro da cidade, que andam de táxi, de fato e gravata de marca, pasta preta e telemóvel caro. São os empresários que preparam o trabalho do dia seguinte num quarto de duas estrelas, com água a pingar na banheira, com janelas de vidros baços e madeira descascada, cortinas pesadas e pouco limpas. Acordam cedo no dia do seu negócio, levantam-se, lavam-se, penteiam o cabelo e vestem a melhor camisa, por baixo do pullover mais novo. Fazem tempo para a hora do pequeno-almoço e chegam com a chave na mão. À falta de lugar sentam-se ao lado da rapariga que tem ar de ter acabado de acordar, que come um croissant seco, sem saber que pode pedir uma torrada. Bebem chá, comem um ovo cozido sob o olhar assustado da rapariga da frente, comem uma maçã, pedem uma torrada. E seguem de metro, com uma pasta de tecido, presa ao ombro com uma alça. Na cabeça acredito que levem mais do que o empresário de fato de marca, que comeu papaia e manga ao pequeno-almoço, bebeu café da Etiópia, leu os jornais internacionais que nas bancas custam mais de três libras cada, foi ao jacuzzi de manhã ou fez Tai Chi na sala de vapores de cristais japoneses, antes de ter feito sinal com o dedo para que lhe chamassem um táxi e tivesse pegado na sua pasta cara e tivesse entrado no táxi, sem ter sequer de largar a pasta e o iphone pois alguém abriu a porta por ele.
Regresso à manteiga na torrada e lembro-me das fatias de pão seco, entre fatias de pão fresco, que comi todas as manhãs barradas com doce, no hotel em Sarajevo. Havia ovos cozidos que me despertam sempre o mesmo susto onde quer que seja. Café bósnio, bom, estranha limonada, doce até fazer comichão no céu da boca. Comi fatias de pão metade barradas com manteiga, outra metade com doce. O mesmo doce que me fez lembrar o doce dos meus tempos de férias, em Penafirme.  E assim percebi que, mais tempo tivesse, daria a volta ao mundo, viajando entre as tantas outras vezes que pus manteiga numa torrada.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Ao som delas, acordo todos os dias


Entre o início e o fim da subida

Passei a poder estar no jardim. 'Agora é como se fosse outra divisão da casa', disse-me ontem a senhora, no dia em que cheguei de novo à Escócia. Como se fosse uma Escócia nova, quente, sem casacos, pés descalços. Desejo que assim continue e que o jardim passe a ser parte da casa. Uma vez mais lembra-me o jardim de casa dos meus avós, onde a cada recanto eu atribuía um significado especial. A árvore do baloiço, o terraço para onde não me deixavam ir por ter muros baixinhos, a terra onde escavava e a pedra com o buraco do guarda-sol que eu utilizava como uma pequena panela, cheia até cima com a água da chuva.

Hoje sentei-me sozinha no jardim. Assustei-me com o susto da pomba gorda que anda sempre por aqui e que levantou voo com enorme dificuldade. Sentei-me numa das duas cadeiras de ferro verde, com uma pequena mesa à frente, redonda, com pequeninos ladrilhos de cores no tampo. Em duas semanas, a macieira passou a ter folhas e as flores estão a caminho. Lembrei-me de como, quando vim para aqui viver, ainda tinha maçãs.  Antes que elas caíssem, passadas uma semanas de eu ter chegado, subi a um escadote mal pousado para as apanhar. Meti-as nos bolsos depois de ter enchido o saco e fiz a minha primeira tarte de maçã.

Sete meses depois de cá ter chegado, já não há maçãs, mas as folhas voltaram. Ontem sentei-me com a senhora no jardim, dois copos de vinho branco. Duas etapas bem diferentes da vida: uma atribulada primeira fase e uma tranquila última fase. Como um dia um professor me escreveu: é a difícil  e lenta subida da montanha e depois a fácil e rápida descida. Sem que nenhum dos lados da montanha tenha de ser sombrio.

Partilhámos pequenas histórias da subida e da descida. Ela relembra aos setenta e três anos os tempos em que deixou os Estados Unidos, tinha pouco mais de dezassete. 'Quando se volta, é difícil identificarmo-nos com as pessoas que lá deixámos. Nunca ninguém percebe o que vivemos. Continuas a querer voltar para trás?', perguntou-me, enquanto já me dava a resposta que esperava. Olhei para ela. A resposta a esta pergunta depende sempre da fase em que estou. Voltei a sair de casa hoje, cheguei aqui há duas horas. Deitei-me em cima da cama assim que cheguei, de janela aberta, a sentir-me perdida. E, como sempre me acontece, acordei sem saber onde estava. Viria a acontecer o mesmo durante a noite. A dor existe de cada vez que saio de casa, apenas é mais ténue agora. Portanto talvez hoje não seja dia de responder aventureiramente. 'Acho que há duas opções. Uma é não aguentar a distância que passa a existir entre aquilo que era e aquilo que sou. Aí, não resta opção: não voltar atrás. A outra opção é aceitar a distância, engolir todos os momentos, guardá-los e revivê-los sozinha, sem esperar que ninguém os entenda. E então, sim, é possível voltar atrás', disse-lhe. 'Mas isso signfica viveres mais isolada e sozinha', foi a resposta. Sei disso. Ela confessa ter pena de nunca ter voltado a rever ninguém desde que acabou a escola e saiu do país. 'Foi um corte profundo, acabou ali. Depois parti para o Bangladesh, casei-me e vim para aqui. Nunca mais soube de ninguém'. E embora não me tivesse passado sequer essa ideia pela cabeça, dos seus setenta e três anos ela acrescentou: 'Não gosto da ideia do Facebook'.  Ri-me e seguimos para uma conversa mais leve até acabarmos o vinho.
Hoje sozinha, sentada na mesma cadeira, pensei em como nunca serei capaz de traduzir exactamente estes instantes. Concluo apenas que embora quase cinquenta anos nos separem, somos uma espécie de reflexo: uma atribulada no início da subida, a outra numa pausa tranquila para reflectir sobre o que se vê lá de cima.

domingo, 10 de abril de 2011

De volta a uma Escócia surpreendentemente quente, com as paisagens que sempre imaginei. Campos verdes, sol, céu limpo. Pela primeira vez, vivo momentos na Escócia sem ter frio. E a cidade parece outra.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Todos os dias, ao meio-dia, as muitas pombas na praça central de Zagreb, Trg bana Jelačić, levantam voo. Para marcar a metade do dia, há mais de um século que é disparado um tiro de canhão com pólvora seca da Lotršcak Tower. Hoje ao meio-dia, lembrei-me dos meus dois meios-dias vividos em Zagreb, em dia de sol aberto, vento croata, cansaço de viagem. As pombas levantaram-se com o susto, como todos os dias o fazem, deram meia volta no ar e voltaram a pousar. 

sábado, 2 de abril de 2011

Feliz reencontro, 10 anos depois


"Tem coração aquele que conhece o medo, mas tem somente controle sobre o medo aquele que olha para o abismo mas com orgulho. Que olha para o abismo, mas com olhos de águia - que com garras de águia prende o abismo: isto constitui a coragem", Assim falou Zaratustra, Nietzsche


domingo, 27 de março de 2011

Home

O bom de viver fora de Portugal é que em qualquer altura, aconteça o que acontecer, é possível ter saudades de Portugal. Depois do primeiro voo directo Edimburgo-Lisboa de 2011, absorverei todos os instantes dos próximos dias. 

domingo, 20 de março de 2011

Sarajevo-Zagreb em silêncio

Acabados os meus dias em Sarajevo, dia 13 de março, dirigi-me logo de manhã para a estação de autocarros. Despedimo-nos todos no hotel, depois do último pequeno almoço de pão, manteiga, doce e café. Cheguei à estação com mais dois amigos, tencionando levantar dinheiro para o bilhete numa máquina da estação. Faltavam quinze minutos para o meu autocarro, que levaria seis horas a chegar a Zagreb, menos quatro que o comboio. Assim que cheguei percebi que a máquina não estava a funcionar e que o autocarro afinal levaria nove horas a chegar a Zagreb. Depois de ter resolvido o assunto, corri para o meu autocarro, parado na última linha da estação. Sem termos uma língua em comum, o condutor insistiu em explicar-me alguns detalhes sobre a viagem e sobre a mochila que eu ia deixar na bagageira do autocarro. Explicou-me tudo em bósnio, embora tenha dado a entender que não o perceberia. Pediu-me um euro, ou dois marcos, para manter a minha mochila na bagageira. Subi para o autocarro para perceber que o meu lugar estava ocupado por um saco de plástico com o farnel de um senhor sentado no banco do lado. Sabia que não nos íamos entender, optei por me sentar noutro banco, fazendo sons e gestos para dizer 'é o meu banco, mas não há problema , sento-me noutro'. Sentei-me atrás dele, fazendo o meu saco do farnel ocupar o banco ao meu lado. Esperavam-me nove horas sentada, sem sequer conseguir perceber por quanto tempo o autocarro parava para irmos à casa de banho. 
Viria a dar conta durante a viagem que havia dois condutores. Um deles, o que insistia em explicar-me tudo em bósnio, era um senhor arranjadinho. Uma camisola de riscas, aprumado, umas calças azuis de motorista de autocarro, que tiveram um vinco durante as primeiras horas de viagem e o foram perdendo. O outro motorista era mais novo, mais moderno, mais despachado. Trocaram  de lugar uma ou duas vezes durante a viagem, numa das inúmeras paragens que separaram Sarajevo de Zagreb.  Das vezes que parámos, fui sempre a mais rápida a ir à casa de banho, com receio de que  aquilo que eu ouvia dizer quando o autocarro parava - 'pausatakaminuta' - fosse pausa de dois minutos. O maior tempo que passámos parados foi no controlo de passaportes na fronteira. Graças a uma rapariga que falava inglês, consegui entender que tinha de sair do autocarro com o meu passaporte (que já tinha sido visto dentro do autocarro) e fazer parte de uma fila. De regresso ao autocarro, percebi que o senhor do banco da frente já tinha mudado. Tinha entrado um velhinho perfumado que ocupou o lugar do saco do outro senhor e que levou o seu livro aberto no resto da viagem. 
Cheguei a Zagreb oito horas depois de ter saído de Sarajevo, com um estranho aperto de saudades de uma cidade que uma semana antes não conhecia. Sem imaginar que um só dia na capital croata seria suficiente para deixar as melhores recordações.

Os chefs bósnios

Duas gerações de Chefs da BiH.
Enquanto que o chef da geração mais antiga ficou a tratar dos borregos inteiros a assar, o chef da geração mais nova foi-me mostrar as paisagens que eu deveria fotografar. Achou estranho quando eu quis entrar no recanto mais feio das traseiras do restaurante: um armazém pequeno com um enorme alguidar vermelho, cheio de água, onde ainda estava um borrego inteiro de molho. O outro aguardava no espeto de frente para a paisagem que o jovem chef me levou a ver. 







sexta-feira, 18 de março de 2011

As vidas de Sarajevo

A primeira vez que o vi nas ruas da cidade dei conta de como andava todo enrolado. Uns dias depois, percebi que ele dormia à porta de um prédio junto ao edifício dos correios. Vi-o novamente, desta vez, sentado ao sol, igualmente enrolado, à porta de uma papelaria. Preenchia um papel com números, escritos a lápis. E o lápis estava tão pouco afiado que os números eram enormes no papel que ele tinha na mão.

Diariamente, abre o mercado no centro da cidade. Várias mesas expostas num espaço aberto, embora tapado com placas de plástico, juntam todos os tipos de legumes, frutas, flores, mas também chinelos, cuecas do tamanho do mundo, maços de tabaco, tampas para panelas, panos da louça, toalhas de renda e molas para cabelo com tanto pó que a cor era diferente.

Era a única mesa na qual o sol batia. O senhor vendia apenas laranjas e couves. Passou o tempo a cortar limões, com umas mãos enormes e uma nódoa negra nas costas da mão esquerda. Pedi para tirar fotografia e num dos momentos, que perdi por segundos, ele acenou com o pano onde limpava as mãos.

Laranjas e clementinas foi o que mais comi durante a viagem. Comprei laranjas em todos os mercados onde fui. Óptimas.

O mercado diário de Sarajevo.

Os chinelos à venda numa bancada ligeiramente fora do espaço do mercado. Tive autorização para tirar a fotografia e a senhora, ainda que possa não parecer, sorriu quando agradeci.
Pedi para tirar foto aos ananases dentro de um vaso, à venda no mercado. O rapaz tirou-os do vaso e posicionou-os para a fotografia.

Aquele que se poderia imaginar ser o trabalho de uma florista - fazer pequenos raminhos - era o trabalho de um rapaz, a trabalhar para o chefe (o dos ananases).


Bamija é um prato bósnio que experimentármos num restaurante, no dia anterior a termos percebido em que é que consistia. É um prato com carne e okra, uma espécie de pequenos frutos, com uma têxtura áspera. Mal viamos o que estávamos a comer no início do jantar, mas a meio desistimos.

O prédio abandonado por onde passámos de camioneta várias vezes e que despertou a minha curiosidade em vários momentos...

... devido ao sofá abandonado num dos andares.

Os três sapatos numa mesa tentavam atrair clientes para a sapataria que estava recuada em relação à rua principal.

Os restos dos cartazes publicitários e das campanhas eleitorais.

Os heróis.

O dia-a-dia da cidade, com água a ferver e as vassouras utilizadas em todo o lado.

Os contrastes que se vêem na cidade.

A razão que me fez ir à BiH e a razão que me levou a apaixonar-me pela complexidade do país.

O guarda-chuva.

Em qualquer porta de um prédio em Sarajevo.

Como em qualquer outra cidade europeia.
As ruas de Sarajevo, sempre com as colinas como fundo.




A vida diária no bairro turco.

Uma das lojas onde se acumulam bocados de tudo, com as suas devidas histórias.

Não conseguimos comunicar, nem perceber o que ambos fazemos na vida.

A exposição de panelões como se fosse algo comprado diariamente por toda a gente. Pensei seriamente na paciência de alguém que todos os dias expõe os panelões à porta da loja e os retira ao fim do dia.

A entrada para um dos espaços com esplanada, rodeados por pequenas lojas.



O bairro turco.
Os contrastes. Homens na rua durante o dia todo.

Parte de uma geração que partilha muitos dos mesmos problemas.

A Praça dos Pombos, como passou a ser conhecida, logo pela manhã de sábado, com três horas de sono, neblina nas colinas, sol morno e o começo do dia.