sábado, 14 de abril de 2012

Post-Scriptum: 11 meses depois

Abri a caixa do correio com a chave mais pequena de entre todas as outras. Lá dentro havia um envelope maior que os outros, escrito à mão com uma letra muito certa, a tinta azul. Não tinha remetente à vista, pelo menos não onde eu o esperava. Vi apenas um carimbo do correio: Edimburgo. Mas uma das coisas que aprendi ao longo dos últimos meses, de outras vezes que abri a caixa do correio, é que a posição do remetente não tem de ser exatamente aquela que eu espero que seja. Assim, com a lentidão de querer prolongar a curiosidade, virei o envelope. Lá estava, na parte de trás, em letras mais pequenas e igualmente manuscritas, perfeitamente acertadas: Bill, bouquiniste. Tinha-lhe escrito há umas semanas, partilhando as recordações de uma manhã de sábado em que, de longe, revivi o que habitualmente eram as minhas manhãs de sábado escocesas, revolvendo os novos livros que ele arrumava em filas, de lombadas para cima, uns colados aos outros, nas mesas colocadas no meio da estrada. Chegava a resposta. Dentro do envelope, num postal, escrito com uma letra igualmente miudinha, ele descrevia os últimos meses: mau tempo, menos vendas na rua, ano difícil, discussões sobre a independência da Escócia e o facto de, apesar de tudo, Portugal continuar a aparecer raramente na televisão. O postal onde escrevia era idêntico ao que eu tinha comprado há quase um ano, por ser uma pintura recente de Saint Andrews que retratava precisamente as mesas expostas na rua com os livros que ele, todos os sábados, escolhia. Só que dentro do envelope havia ainda outro postal: um dos antigos com uma fotografia da Market Street. Na carta que lhe tinha escrito, relembrava o postal que ele me tinha dado na minha última passagem pela loja: um postal, dessa mesma rua, que ainda hoje mantenho à vista. 'Mais um para a tua colecção', escreveu a lápis. Foi também com a minha senhoria que aprendi a procurar o remetente nas costas do envelope. Até há pouco tempo ela ainda escrevia sobre 'a coincidência de só ter estudantes de países em crise', já que a deste ano é grega, tema esse que preferi não aprofundar. Outros que escreveram o remetente atrás contaram as sagas à procura de emprego, as passagens por fábricas de automóveis, por traduções voluntárias ou estágios não-remunerados em Bruxelas, Genebra, Estrasburgo ou Londres. Também recebi as boas notícias de quem foi para a Índia criar uma empresa, de quem regressou à Tailândia, de quem entrou em Cambridge, de quem foi para o Uganda. Em Dezembro, trocámos postais de Natal; em Março, relembrámos o tempo passado na Bósnia e Herzegovina. 11 meses depois, sei que um mesmo número de dias pode passar com velocidades diferentes: estes útlimos voaram mais rápido e de forma mais leve que os anteriores. E agora que já passaram mais dias cá do que aqueles que lá vivi, um postal pareceu-me, afinal, justificar mais uma linha.

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quarta-feira, 8 de junho de 2011

A última linha de Cascos

É como os segundos depois de terminar a última linha de um livro. O mundo suspende-se nos instantes em que é digerido o último fôlego, as últimas impressões. Há uma sensação de estar perdida por não haver mais a seguir. Acabou. Antes de conseguir fechar o livro e pousá-lo, mantenho sempre a página aberta por mais um tempo, agarrando a sensação por mais uns minutos, fugindo de o ter de fechar e seguir. Nesses instantes, nunca releio essa linha, nem as anteriores. Não gosto de dobrar histórias, de sentir que me faltaram pormenores, de que afinal não foi bem como tinha ficado a pensar que era. Foi o que li. Resta-me olhar para o espaço em branco, antes de realmente o fechar e de tentar em vão devolvê-lo à sua forma original, com a contracapa já mais próxima da última página.
Estes segundos são o mesmo que estes últimos dias. Uma espécie de digestão dos últimos fôlegos. Da última festa, vim com todas as promessas de um dia nos encontrarmos sabemos lá nós onde, com os desejos de irmos juntos à Índia, de trabalharmos na Indonésia, de escrever a partir do Congo. Despedi-me de quem parte para o Afeganistão ou para o Bangladesh. Mas este é também o dia em que conscientemente esvaziei as minhas gavetas. Sei agora que me vou lembrar de o ter feito, vou lembrar-me que ter posto estes meses em caixas. Falta-me  tocar às portas de quem fez parte deste tempo, deixar os últimos abraços depois dos apertos de mãos. E fica-me a faltar uma só despedida: da senhora que me deixou em desespero em tantos momentos, que me obrigou a respirar fundo, a mesma com quem vi o Black Swan enquanto comia pipocas tamanho kid, que me ensinou o nome das plantas em inglês, que me perguntava as mesmas coisas várias vezes, que me contava as mesmas histórias várias vezes, a  mesma que me pediu que a ensinasse a utilizar um telemóvel, a encomendar um livro na Amazon, a levar o ipod no comboio para poder ouvir música, a mesma que me ensinou a fazer brownies, que me tentou convencer que é possível conseguir dinheiro se o pedirmos insistentemente. A mesma que me abraçou quando cheguei em setembro sem ter a certeza que ela existia, a mesma que comprou o jornal todos os dias durante oito meses para eu poder estar a par das notícias, que me trouxe copos de cristal com vinho chileno e sul-africano, a que me dobrou a roupa porque não tinha nada para fazer ou que deixou meia quiche para o meu jantar no exacto dia em que não teria paciência para comer mais do que pão.
Agarrados os minutos, resta-me escrever a última linha, fechar o livro, e moldar-me - provavelmente em vão - para me devolver ao que era. Com a contracapa colada à última página, assim se chega ao fim.

Há mais cobardes em ser iludidos, do que em ir para a guerra.
Agustina Bessa-Luís

Mr. Bill

Adiava a prometida despedida do alfarrabista, o senhor de camisola de malha por cima de uma camisa de flanela com quadrados. Mas de repente receei já não o ver mais. Ele surgirá sempre aos meus olhos com as suas rosetas vermelho-vivo, cor que se alarga para lá das bochechas quando se envergonha. Até isso temos em comum. Entrei para me despedir, tal como tinha entrado há uns meses atrás para conhecer pela primeira vez a book shop da rua. Estava só ele, no seu cantinho, só lhe vejo um bocadinho do já pouco cabelo alourado. 'Como prometido, aqui estou para me despedir'. E ele levantou-se, já com o vermelho alastrado, perguntou-me pelos meus últimos dias. Respondi-lhe e estendeu-me um postal antigo. Um dos postais perdidos que durante oito meses eu vi dentro dos caixotes, pequeninos, ordenados por países, com histórias que nunca chegaram ao destino, com elogios e  notícias que nunca chegaram a ser ouvidos. Nunca comprei nenhum. E no último dia antes de partir, era exactamente isso que ele me estava a dar. Dentro de uma capinha de plástico. 'É a Market Street que conheces, mas há muitos anos atrás', disse-me.  Virou o postal para me mostrar que tinha já posto o cartão com os contactos da loja, o resto do postal estava em branco. Já não branco de cor, mas por não ter nada escrito. Engoli  em seco, o mais forte que consegui, tentando nem pensar. Trocámos umas palavras e saí. Quando desviei o cartão com os contactos dele, percebi que  afinal tapava uma frase, escrita a lápis no postal: 'Best wishes for the future, Bill'.

terça-feira, 7 de junho de 2011

E o que aprendi em oito meses

A reviver inesperadamente grande parte da minha infância: instantes e episódios dos quais nunca me tinha lembrado, que surgiram aos pedaços, sem sentido. O jardim, as flores, os pássaros; beber chá no jardim, descobrir um ninho num arbusto,  ter a avó que há anos deixei de ter. Percebi que vale a pena mudar, também percebi que é possível que doa mais do que se imagina.
Aprendi a querer ainda menos, a comprar menos, a ver e a imaginar mais. Apercebi-me de que cozinhar cuscuz é barato. Conheci a salada de pepino, presente na minha ementa até há duas semanas atrás, até a coincidência me ter deixado intoxicada e me ter levado a pensar em desespero e isolamento que estivesse a morrer. Lidei com o desespero, respirando fundo e sentando-me no banco de madeira do jardim a ler On Violence da Hannah Arendt, começando pelo parágrafo - 'If you ask a member of this  [younger] generation two simple questions: 'How do you wish the world to be in fifty years?' and 'What do you want your life to be like five years from now?', the answers are quite often preceded by ... 'Provided I am still alive'.
Aprendi a comprar laranjas nos mercados de todas as novas cidades que visito e sentar-me num banco a comê-las, enquanto observo quem passa. Apreendi a Escócia, os hábitos, as opiniões, o sotaque, os comboios e autocarros, as estradas, a condução à esquerda. Aprendi a não me sentar nos bancos centrais dos aviões quando viajo sozinha, pois a única vez que o fiz fiquei entalada por dois bêbados. Aprendi a carregar malas de trinta quilos sozinha, por vezes sem uma roda. Aprendi que é especial estudar numa faculdade onde existem todas as condições, mesmo que rodeada por um ambiente medieval. Percebi que o tempo pode mudar em dois minutos e vi as mais inacreditáveis paisagens. Vi também os meus pés azuis, depois do sangue ter desaparecido quando os dezasseis graus negativos o exigiam. 
Aprendi como existiram e ainda existem jornalistas a sério na Bósnia e Herzegovina (BeH). Como existe uma modista que mudou um dia da minha vida em Sarajevo. Apaixonei-me pela desorganização da cidade. E não só: percebi como os jovens bósnios são fruto de uma das mais interessantes misturas de emoções, revoltas, limitações e aspirações. 
Percebi que os livros que consegui ler, para lá dos da faculdade, estiveram sempre ligados a histórias de gente fora do país onde nasceu. Aprendi a acordar ao som das gaivotas, a conviver com uma toupeira-bebé no jardim e a não reutilizar as saquetas de chá. Consegui fazer quatro ensaios, três exames, duas apresentações orais, escrever sobre as favelas no Brasil, a China em África, a revolta no Iémen quando ainda só estava a começar, os jornalistas na BeH, a reconciliação em Timor-Leste, a verdade em El Salvador, a gestão superficial de Caxemira, as injustiças no Afeganistão. Aprendi a reconhecer portugueses pelo sotaque em inglês e a saber que, por mal que nos conheçamos, havemos de nos juntar a comer bacalhau.
Aprendi a visitar alfarrabistas e a reconhecer os caixotes de cartão com os melhores livros.  Percebi que é possível viver no meio do nada, no norte da Escócia, como me ensinou um casal de escultores americanos, rodeados por um lago, um moinho antigo, esculturas e uma garagem com tantos frascos como o meu avô tinha na dele. Também percebi que o meu avô me marcou, assim como ter ouvido as vozes de quem viveu a guerra em Sarajevo. 
Aprendi que é possível ter amigos com quem partilho a vontade de não ficar, de ir e de querer, de sentir. Com quem partilho, ainda antes de saber, os meus receios, as mesmas dúvidas e as mesmas certezas. Vivi as conversas de horas e horas, de garrafa de vinho, de inglês contorcido, de regresso a casa em linha pouco recta. Partilhei histórias que nunca ninguém teve interesse em ouvir. Ouvi histórias que nunca tinham sido contadas.
Enganei-me, errei e arrependi-me muitas vezes. Desejei voltar para casa, desejei que o tempo passasse depressa e questionei ter vindo. Congratulei-me por ter vindo e desejei que o tempo tivesse passado mais devagar.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Uma semana: antes e depois

Agora que estou a uma semana de deixar isto, voltei atrás ao dia 30 de Setembro. Na altura, no mesmo sítio onde estou hoje, escrevia sobre a minha primeira semana: 

E passou a primeira semana. Num ápice, como se em tudo o que é novo houvesse já uma sensação de familiaridade. Não deixa de ser estranho. Embora tudo me fosse absolutamente desconhecido desde o primeiro minuto, nada doeu. Ou quase nada. Como se me tivesse vindo a preparar para tudo isto nos últimos anos. E de forma muito eficaz, concluo agora. Como se tivesse estado encostada a uma porta fechada, imaginando o que poderia estar do outro lado. 30 de Setembro de 2010
 
Há dois dias atrás sonhei que estava em Portugal, já em casa, com as minhas malas, e que não me lembrava de nada dos meus últimos dias aqui. Não me lembrava sequer de ter tirado a roupa das gavetas. Culpei-me e lamentei-me no desespero de já tudo ter acabado. Quando acordei, senti o alívio não só de afinal ainda cá estar, como de ter percebido a tempo que preciso de viver cada segundo dos últimos dias. E de conseguir recordar um dia o  momento em que esvaziei as gavetas.

terça-feira, 31 de maio de 2011

For once, in English

Less than two weeks before leaving, I realise that I owe some words in other language. For the first time, I know you will read me with no doubts, with no weird internet translations that are able to completely destroy what is written. For almost one year, I struggled to express myself in English exactly as I would do in the language I speak almost since I was born.  That language that has become my job, the same language that allows me to describe the world as I see it,  with all the details, the colors, the smells and with all the mixture of sensations and feelings that become deeply linked with each moment. The same language through which I lived my childhood, I learnt the first songs, the first words. The language that I am able to speak fast, so fast as you do, the language in which I do not mix a ship and a sheep and, for sure, I never mix living and leaving. Indeed, this is the best I have learnt:  to leave and to live. I understood that I had to leave to be able to live more. For a few months, leaving meant getting out of my home. Now, leaving means getting back home. But I know I lived and I know I learnt. How could I ever imagine a sheep swimming in the river with carnations, celebrating a revolution? I had to come here to have this picture in my head. Beyond that, there is one more thing I have learnt: in a different language, maybe you are not exactly the same person. Of course inside it is the same. But what comes out is not: the reactions, the often too-long silence, the wrong tone, the wrong verb tense. Sometimes, that was not me. How many times my 'no' or 'yes' meant 'not now', 'maybe later' or 'I know I won't be able to say exactly exactly what I want to say'. As a special friend told me, 'So it means I met you more vulnerable'. That is true. And if I look back now, I praise every second, every hesitation and everytime I smiled alone after realising what I had said. Maybe the other me would have said more, but for sure would have smiled less. All this to say: thank you.

sábado, 28 de maio de 2011

Coração à direita, pó e tangerinas



Os oito desenhos em folhas A3 estavam pendurados num quadro. Em cada um deles havia um coração no lado direito do peito. E em cada um deles o interior do corpo humano era diferente. Um papel escrito a computador explicava que naqueles desenhos as crianças tinham desenhado o que achavam ser o corpo humano. Num cartaz ao lado estava o corpo humano a sério, com os nomes de todas as entranhas e ossos. Estávamos as três sentadas em cadeiras de escola, com o rabo a vinte centímetros do chão e os joelhos quase à altura dos ombros. O vento era assustador, a chuva impedia que víssemos para lá de uns duzentos metros. Das janelas da escola primária dava para ver o topo dos arbustos mais frágeis a tocar o chão, os brinquedos perdidos a ir contra os passeios e um tanque cheio até transbordar. Na estrada junto à entrada da escola, no meio do nada, os carros acumulavam-se numa fila. Aqueles que decidiam não esperar davam meia volta e regressavam por onde tinham vindo. O vento de mais de cento e quarenta quilómetros por hora tinha deitado a baixo sete árvores na mesma estrada. Não tínhamos para onde ir, os nossos planos de chegar à ilha de Skye tinham vindo a ser destruídos nas últimas duas horas, em que tentámos em vão encontrar alternativas para as estradas cortadas pelas árvores. Os faróis dos carros em sentido contrário avisavam-nos da impossibilidade de seguir caminho por ali. Entre chuva e vento medonho, abríamos as janelas e percebíamos que por ali também não dava. Sem sítio para onde ir, parámos no primeiro e único slugar fora da estrada. Perceberíamos mais tarde que era uma escola primária, onde os alunos estavam todos à espera do autocarro que não chegaria tão cedo. 

Para além dos desenhos nas paredes, havia um grande caracol vivo dentro de um aquário, um canto para leitura, uma casinha improvisada no meio da sala com um toldo de jardim, um cesto pendurado no tecto com utilidade desconhecida e um canto com jogos de palavras. Deram-nos tangerinas e palitos de bolacha com chocolate. A professora ia colando legendas nos caixotes com materiais, enquanto nos contava mais sobre a vida dela, os alunos, a escola. Contou-nos viver a mais de trinta milhas dali e que todos os alunos moravam a umas cinco milhas da escola, todos em direcções diferentes. O vento continuava assustador, os carros parados em fila. Por instantes olhávamos umas para as outras para termos a certeza de que tudo estava mesmo a acontecer. Por fim, disseram-nos que não iamos conseguir ir longe. A maior árvore levaria uma noite para ser tirada do caminho. 

Uns quinze minutos separaram a sensação de não termos onde dormir da euforia ao espreitar para cada um dos quatro quartos e magníficas salas da casa onde viríamos a ficar uma noite, sem electricidade. Perdido no meio de Stirlingshire, existia um amontoado de casas para alugar, viradas para um lago, rodeado de relvados com ovelhas e vacas. E no meio das pequenas casas, uma enorme casa. A dona, mãe de uma das alunas da escola, nova, com cabelo encharcado pela chuva e as mãos sujas de cortar árvores, ofereceu-nos a casa por um preço mais baixo do que aquele que teríamos pago no nosso hostel em Skye. Veio ter connosco na sala onde comíamos tangerinas. Estendeu-nos a mão cheia de pó, ao que respondi com uma mão peganhenta com sumo de tangerina. Naquele momento, nada interessava. Disse-nos em velocidade que podíamos ficar na casa dela, que pensássemos um bocado e disséssemos se queríamos. Não tinhamos qualquer outra alternativa, aceitámos. E antes que saíssemos da escola e seguíssemos o carro dela, agradecemos a quem nos acolheu por mais de meia hora no meio da maior tempestade dos últimos meses. 

A casa tinha uma espécie de varanda envidraçada, virada para um enorme relvado onde as ovelhas, alheias a qualquer tempestade, comeram erva desde que chegámos até que adormecemos. Esperámos que a electricidade voltasse, o que nunca chegou a acontecer. Comemos as nossas sandes, embrulhados em todos os cobertores das dez camas que a casa tinha, resistindo aos seis graus. A luz do dia durou até às 23h, altura em que percorremos a casa com velinhas pequenas até nos afundarmos nas luxuosas camas. 

O dia seguinte levar-nos-ia até à ilha de Skye, onde as estradas para dois carros têm a largura de um estreito. A chuva foi quase permanente, a temperatura desceu a quatro graus, tivemos granizo, gelo, frio, sol, arco-íris. Voltei a vestir o mesmo que vesti quando nevou em Dezembro, voltei a ter os pés encharcados e meias ensopadas, voltei a ter de usar secador depois de lavar o cabelo, enrolar-me em cachecóis. A ilha de Skye vale pelas paisagens e valeu pela estrada que liga a costa este à costa oeste, cortando a paisagem a meio, mas sem casas, sem nada para lá de um risco no meio de montanhas e vales.

Dos três dias de viagem e dos mil e setenta quilómetros, guardo a intensidade das paisagens e as emoções extremas que mudaram à mesma velocidade a que muda o tempo na Escócia.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Um dia volto para me vir buscar

Dou comigo de olhos abertos, tão abertos como se tivesse acabado de acordar, em vez de estar a tentar adormecer. Percebo que o tecto do quarto tem uma forma cujo nome desconheço e que a luz  da rua se reflecte directamente nele. Na cortina branca, como se fosse a pálpebra da janela, vejo a forma triangular do telhado da frente, tal e qual como a primeira casa que terei desenhado em papel. Um triângulo por cima de um quadrado e uma chaminé,  que não era mais do que um rectângulo pequenino pousado num dos lados do triângulo. Pela janela da casa da frente só uma vez vi um homem que arranjava cortinas e levantava caixotes.  A senhora que lá vive sozinha, quase cega segundo se diz,  deve manter-se no andar de baixo. A janela até tem uma cortina branca com umas rendas, levemente transparente, mas nunca sei bem se o que vejo é o que existe lá dentro ou se é o meu próprio reflexo. Ao contrário dos reflexos no tecto, reconheço o silêncio das noites. Só é pontuado por grupos de gente de regresso a casa, mais felizes do que quando terão passado de manhã em sentido contrário, no silêncio de uma chávena de café.

Ainda estou com os olhos abertos, mais abertos até, como se tivesse por uns instantes avançado no tempo e sentido o que ainda não senti. É como se antecipasse um vácuo,  aquele que imagino vir a sentir. Uma sensação de eu já não ser o que era antes, mas também de já não ser o que fui aqui. Então talvez reste reconstruir-me. Vou lembrar-me do chiar do portão a abrir. E  o chiar do portão a fechar que durante muito tempo pensei ser o tilintar da buzina de uma bicicleta em velocidade ao saltar do passeio para as pedras. Só mais tarde vim a associar esse som ao fechar do portão que agora já sei ser seguido de um tac-tac-tac. Encontrei-o um dia quando vinha de regresso a casa.  Lembro-me que nesse dia estava cá em casa a actriz que usava dois relógios, a mesma que fez de Kate numa peça de teatro sobre cinco irmãs irlandesas. "One is mine, the other is Kate's", disse. Mas  então, nesse mesmo dia conheci-o na rua. O senhor caminhava no mesmo sentido que eu, uns metros mais à frente. Parou e voltou atrás. 'Poderia explicar-me como é que aquela jovem anda com aqueles sapatos?', perguntou-me, levantando a bengala sem borracha no fundo e apontando para uma jovem  de sapatos-agulha a quem eu tinha dado passagem no estreito passeio liso. Apontei para os meus sapatos rasos e disse-lhe que também não sabia. Ele seguiu o seu caminho e antes que eu abrisse a porta, percebi: era ele quem abria e fechava  o portão, gerando o tac-tac-tac da bengala sem borracha contra o passeio liso. 

Também sei que ao fundo da rua se sente o cheiro das batatas,  são sempre fritas de porta aberta. À porta desse Fish&Chips, dois patos selvagens, pouco voadores, passam os dias chafurdando em duas pocinhas de água que eles próprios criam, ao entornar propositadamente as taças de plástico que alguém lhes enche. Também sei o cheiro dos livros velhos no alfarrabista.  Aliás, há muito tempo que não passo lá, talvez desde que dei ao dono um marcador de livros de Fernando Pessoa, com uma citação traduzida. Lembro-me que lhe dei o envelope com o marcador lá dentro quando o vi a desatar o nó do cartaz rudimentar --  só diz 'Bookshop' escrito à mão -- que  eleata todos os dias à tabuleta  de sentido proibido colocada no início da rua. 

Também conheço a campaínha, sei quando é o carteiro ou quando são visitas. Se é mais curto e rápido é o carteiro do costume, o que empurra o carrinho com velocidade e bebe Irn Bru todos os dias. Se é longo, então é uma das velhinhas de movimentos lentos e vida sossegada. Se toca duas vezes é a neta adolescente. Se toca durante a noite, e seguido de risos, são os que estão nos seus felizes regressos a casa.

Da última vez que dei conta que ainda tinha os olhos abertos foi quando percebi que vou ter de me deixar cá. Mando os livros, levo as malas e um dia volto para me vir cá buscar.


segunda-feira, 16 de maio de 2011

E é assim que depois de oito meses, de dezenas de livros, de centenas de horas de leitura, de 25.000 palavras em ensaios, de apresentações e aulas, de histórias de guerras e soluções para conflitos intermináveis, de apresentações e seminários,  termino o meu último exame.