Todos os dias passo pelo menos duas vezes em frente ao bouquiniste da Market Street. Já se tornou hábito olhar para a montra e espreitar lá para dentro. O alfarrabista, de nome Bill, é o mesmo que ao sábado expõe os livros e postais antigos (que passo vários minutos a ver) nas mesas, no meio da rua. De tantas vezes nos cruzarmos, e de tanto tempo que passo a olhar para as fotografias antigas, passámos a cumprimentarmo-nos. Mas nunca antes tinhamos falado. Ontem, de regresso a casa, mesmo tendo passado em velocidade em frente à montra, decidi parar, recuar e voltar a entrar no muito pequeno espaço. Todas as paredes tem prateleiras do chão ao tecto, preenchidas com vários livros. As lombadas distinguem-se pelas cores, pelas alturas, pela largura de cada uma delas. Pedaços de papel já acastanhados estão colados em algumas prateleiras, escritos à mãos, indicando 'History', 'Religion', 'Military', 'Fiction'. Os melhores livros, os mais antigos, com capas castanhas duras e às vezes com reflexos dourados, estão ao fundo numa prateleira pousada na mesa onde o senhor está sentado. Aliás, se ele estiver sentado mal o vejo quando passo na rua, a prateleira dos livros mais caros tapa-lhe a cabeça. No centro da pequena loja, há uma mesa com alguns livros, os mais baratos e para os quais olho sempre com mais atenção. Depois de ver as lombadas de quase todos, e de folhear um ou outro, dedico-me às prateleiras. Frequentemente procuro os livros que não têm nada escrito nas lombadas ou aqueles que, de tão pequenos, ficam entalados entre os maiores. O silêncio sabe bem, associa-se à idade dos livros e faz-me folheá-los com mais cuidado ainda. A madeira do piso do andar de cima range por vezes, resgatando-me de um dos livros. Quando ontem recuei no meu caminho e entrei de novo, lá estava o senhor com quem me cruzo na rua, rosado junto aos olhos e de sorriso simpático. "Já não me lembro o que está a estudar", disse-me. Nunca lho tinha dito, mas agi como se antes tivéssemos falado sobre isso. Perguntou-me mais sobre Portugal, pediu-me que rapidamente resumisse a história política do país, que lhe lembrasse o que era Portugal durante a Espanha de Franco. Disse-me ter sido professor de inglês. "Era bom a dizer se um livro prestava ou não", contou-me, ao mesmo tempo que limpou o pó de dois dos livros caros, fechados e inclinados na prateleira pousada na mesa. "Nunca fui bom a produzir. A escrever, quero eu dizer. Sempre fui muito crítico sobre tudo aquilo que fazia e portanto nunca nada estava bem. Olhava para o que escrevia, percebia o que tinha de mudar e, assim que terminava, relia outra vez e precisava de mudanças. Nunca conseguia acabar". Alargámos a conversa ao jornalismo de hoje, ao que se escreve e sobretudo ao que não se escreve. Falámos de gerações e de expectativas, confessando-lhe não fazer ideia do que estará para vir daqui a uns meses. "Mas pelo menos vou tentar conseguir melhor", respondi-lhe. Ele recuperou o seu sorriso simpático, que até então eu só conhecia da rua, e disse-me: "But you are already trying". Esqueci os livros e disse-lhe que voltaria em breve. Antes de sair, ele agradeceu-me a conversa. Nunca antes um passo atrás tinha sido tamanha recompensa.
1 comentário:
É verdade. Já estás a tentar.
Arriscando.
É subindo ao galho mais alto que se encontra o melhor fruto.
Os desafios estimulam a nossa criatividade, não há dúvida.
Li o teu blogue com enorme satisfação. Adorei.
Muitos beijinhos.
Venho visitar-te de vez em quando...
Cesaltina
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