Comprei os bilhetes de comboio pela internet e reservei especialmente um lugar à janela, para que desde o primeiro minuto fora de St Andrews pudesse absorver a Escócia. Aguardava uma viagem longa, que se revelou bem rápida. O calor do comboio, sempre demasiadamente aquecido, tentou embalar-me e enjoar-me também, mas resisti mantendo os olhos bem abertos a todas as novidades. O dia não estava muito frio e havia sol de Inverno, tão típico dos dias portugueses. No dia anterior, no entanto, a chuva tinha transformado as minhas botas em duas pedras como se as trouxesse atadas aos pés. Concluí que só umas galochas resolveriam o meu problema, ainda agora no início. Chegada a Edimburgo, fui rapidamente engolida por uma bela cidade, de edifícios antigos e altos, dispostos em colinas. Muita gente nas ruas e muitas línguas diferentes. Imediatamente ouvi o som de uma gaita-de-foles que, descobri, viria a ser quase permanente durante o fim-de-semana. Deixei-me levar pelas ruas e pelo sol, percorrendo pela primeira de muitas vezes os jardins da Princes Street. Extensos relvados, pontuados pelas árvores com as habituais cores de Outono. Uma linha de bancos de madeira, estrategicamente colocados de frente para os grandes relvados, trazem para um mesmo jardim diferentes histórias. Pessoas sozinhas ou acompanhadas, de olhos fechados ou concentradas no movimento alheio, a comer ou a beber um café (sempre com leite) nos já habituais copos take-away com um buraquinho na tampa de plástico. Encontrei duas das personagens do livro que estava a ler (até ter de o devolver na biblioteca). Ashima e Gogol, mãe e bebé, ela sentada num dos bancos de madeira, ele a dormir no carrinho, eventualmente enquanto esperavam pelo pai do bebé, Ashoke, que trabalharia no centro da cidade. Ela lia, debruçada sobre si própria, se calhar um dos livros bengalis que trouxe com ela anos antes de abandonar a Índia. (The Namesake, Jhumpa Lahiri.)
Horas mais tarde, viria a conhecer Jean-Marie Téno, realizador de vários documentários sobre a história colonial e pós-colonial de alguns países africanos. Nasceu nos Camarões e vive no sul de França. Inserido no Festival do Cinema Africano, assisti a um dos seus mais recentes documentários: Les Lieux Sacrés. O próprio cinema africano dentro de um filme africano: como um homem numa pequena cidade do Burkina Faso criou um cinema local, num espaço que aluga por mês, tentando que o valor cobrado por cada entrada pague o aluguer desse mesmo espaço no fim do mês. História essa cruzada com um outro homem, que se intitula como 'Écrivain public', pressionado durante anos pela responsabilidade de assumir uma profissão que sustentasse a família, uma profissão "técnica", longe da escrita. Até que um dia desistiu de tudo. E passa hoje os dias a escrever num portão de ferro verde, frases que poucos percebem. Uma terceira história completa o documentário: um artesão, dedicado ao djembé, que assume o papel de ligar a música ao cinema, percorrendo a cidade com o seu djembe a anunciar os filmes desse dia. Lugares sagrados, explicou o realizador, "porque não só o cinema local é visto por muitos como um lugar sagrado, mas também porque nas horas livres entre a projecção dos filmes, esse mesmo espaço é utilizado para oração dos muçulmanos que vivem na cidade". Em conversa depois do filme, Jean-Marie Téno confessou-me conhecer bem Lisboa e gostar especialmente de Fernando Pessoa. Perguntei-lhe se desde o início teve noção de como as pequenas histórias que contava resumiam de forma tão concreta o nosso mundo de hoje. "Confesso que quando os conheci,percebi que havia ali alguma coisa de especial. Só não sabia bem o que era. Vim a descobrir e a concluir isso mesmo: como três pessoas numa cidade que ainda conserva o mais tradicional do país conseguiam resumir tantas histórias". Partilhámos o gosto pelas pequenas histórias e ficou prometida uma passagem por Portugal em breve.
Guardo ainda, da noite de dia 23, o regresso ao hostel onde viria a dormir muito pouco. Muita gente nas ruas à noite e uma lua maior do que alguma vez a vi. Percebi que cada um dos bancos de madeira tem uma chapa de metal com uma dedicatória a alguém. Como se cada um dos bancos representasse uma pessoa, recordando a sua vida, obra, carácter, acto heróico ou, simplesmente, a sua existência.
De domingo ficam as pontas dos dedos inchadas dos 0ºC da manhã e os esquilos ainda a usufruir da liberdade que tiveram durante a noite enquanto ninguém lhes ocupou os relvados. Inevitavemente fica a sensação de um segundo aniversário passado longe de casa, valorizando a liberdade, mas questionando se todas estas sensações - nem sempre boas - fazem parte da própria liberdade. Ou escolhes conforto ou escolhes subir o Evereste, concluí. As duas nunca poderás ter, até porque cada uma delas pertence a mundos diferentes.
1 comentário:
Tenho umas saudades loucas, quase insuportáveis dessa maldita cidade por que me apaixonei.
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