sábado, 9 de outubro de 2010

O inconfundível som

Andámos durante vinte minutos, a uma velocidade estonteante, que eu tentei acompanhar sem me queixar. Se o dia anterior tinha sido de sol, o dia de ontem trouxe frio e uma chuva minúscula. A única coisa boa dessa chuva é que deixa milhões de gotinhas na roupa e, quando passamos por baixo de um candeeiro na rua, transformam-se em pontos de luz. Passada essa fase simpática, a chuva colou-se ao meu cabelo e fez com que tudo parecesse tão molhado como se fosse uma chuva a sério. O destino era a aula de gaita-de-foles, no Madras College, um bocadinho afastado do centro da cidade de St Andrews. Andei em passos mais largos que os meus, enquanto me assoava a um amarfanhado lenço, tão encharcado quanto o meu cabelo. E a minha atenção tinha de estar concentrada no tapete escorregadio de folhas, que caíram por estarem secas, mas que se transformaram com a água da chuva. Finalmente chegámos, já de noite, às 18h45, e desde uns tantos metros de distância conseguia ouvir o som inconfundível das gaitas-de-foles.

Numa espécie de ginásio da escola estavam alinhados mais de quinze miúdos, uns com gaitas-de-foles, outros com tambores. Estavam todos de costas quando entrei, com um senhor enorme, de olhos encovados, mas de conversa simpática, sentado numa cadeira bem lá no fundo, à frente de todos. Rapidamente começaram a tocar, com os movimentos definidos e acertados. E aí sim, torna-se bem claro que é impossível abstrairmo-nos daquele som: entranha-se e arranca-nos do nosso confortável e realista lugar.

Enquanto tocavam, marcharam, deram a volta e caminharam lentamente na minha direcção. À frente, vinham miúdos de nove e dez anos, baixinhos, louros, com camisas azuis claras fora das calças azuis escuras. Enchiam as pequenas bochechas e esvaziavam-nas rapidamente, enquanto marchavam e faziam as gaitas-de-foles lançar tremendos sons. Repetiram a música várias vezes, sob indicações do senhor de olhos encovados que batia um dos pés enquanto eles tocavam. No meio da banda, havia gente mais velha a tocar. E, mesmo no centro, um altíssimo e distinto homem louro, aparentemente deslocado do restante grupo, tocava num enorme tambor que trazia pendurado com uma estrutura metálica ao peito.

Por instantes pararam para descansar. Os dois mais pequenos vieram pousar as gaitas-de-foles, mesmo ao meu lado, enquanto bebiam água e trocavam umas palavras. Cheios de sardas no nariz e de cabelo desorientado, comportavam-se como dois senhores, com a responsabilidade de tocarem um instrumento com tanta história, difícil de tocar, e exigente para pulmões tão pequenos. De regresso aos ensaios, juntaram-se mais dez miúdos de diferentes idades, dando início ao que seria um grupo de mais de trinta, dispostos em várias filas, a tocar o mesmo. Os braços, maiores ou mais pequenos, apertavam o fole, enquanto seguiam enchendo as bochechas.

Troquei umas rápidas palavras - difíceis de perceber - com o senhor que batia um dos pés ao som da música. Uma hora depois, preenchida pelo som que me acompanharia nos ouvidos até à manhã de hoje, vim-me embora. E descobri como é interessante que, ainda hoje, se aprenda a tocar gaita-de-foles em algumas escolas escocesas, mesmo que a sua origem esteja no início do século XV. E, desde cedo, estiveram ligadas ao exército (foto: 15ª divisão escocesa da 7th Seaforth Highlanders, na Operação Epsom, durante a II Guerra Mundial, a 26 de Junho de 1944).


2 comentários:

Margarida disse...

Que delícia!!! Raquel, uma explicação, por favor: no trecho que ouvimos, umas gaitas fazem o baixo contínuo (aquela nota mais grave em permanência) e outras tocam a melodia, certo? Ou a mesma gaita toca os dois registos?

Raquel Albuquerque disse...

Para te ser sincera não sei, mas garanto-te que em breve te informo detalhadamente sobre o seu funcionamento! Vou ter de aprender :)