domingo, 31 de outubro de 2010

pela Escócia


Foi sem pensar que cedi à tentação de passar mais um dia fora de St Andrews. Tende a ser a seguir aos momentos de ausência de pensamento que acontecem as melhores coisas ou, então, que cometo os maiores disparates. Enquanto ainda não reflectia, quebrei a rotina dos meus sábados de manhã e acordei às sete. Era ainda de noite, tinha os minutos contados para poder estar a horas decentes na paragem do autocarro que nos levaria a Dundee, cidade próxima, onde o carro tinha sido alugado. O destino era a competição de gaita-de-foles: Glenfiddich Piping Championship 2010, em Blair Atholl, uma cidade mais a norte da Escócia.




Seis horas a ouvir gaitas-de-foles dentro de uma sala repleta de chifres pendurados nas paredes foi difícil. A curiosidade em relação ao instrumento e ao seu som está totalmente satisfeita, não restam dúvidas nenhumas. Só preciso de um tempo de descanso até conseguir ouvir a próxima. Sobressaía distintamente o orgulho dos escoceses, com os seus kilts. Diferents xadrezes, cada um marcando a história do seu clã, combinados com casacos nem sempre bem escolhidos. As meias até ao joelho, verdes, cinzentas ou azuis e com sapatos pretos cujos atacadores são apertados no tornozelo. As saias de pregas até ao estômago são apertadas por uns enormes cintos de fivela. É nesses cintos que os homens apoiam as mãos enquanto estão parados à espera, seja do que for. Mas o acessório mais curioso - se é possível quantificar a curiosidade que tudo isto ainda desperta - é uma malinha. Uma malinha que trazem com uma corrente à volta da cintura, como se fosse uma das assustadoras bolsas de cintura, com fecho, que ainda por vezes se vêem em Portugal. Mas estas são diferentes: feitas de pele, com mais ou menos apetrechos, visam resolver a inexistência de bolsos no kilt. Perguntei-me várias vezes o que levariam os homens naquelas bolsinhas. Só depois da competição, enquanto comíamos fish and chips, descobri que moedas é um dos objectos ali colocados, quando atrás de nós um dos vencedores da competição abriu a sua pochette e tirou umas moedas para pagar a sua dose avantajada de fish and chips. Em casos extremos, há quem use uma bengala forrada com padrão de xadrez. Pela primeira vez na competição, houve uma rapariga a participar, a mais nova de sempre (18 anos). Reconheço-lhe todo o valor, pelo papel desempenhado num mundo de gaita-de-foles que continua a ser de homens, orgulhosamente nas suas saias, velhos e novos, gordos e magros, com xadrezes mal combinados ou com elegância digna de um segundo olhar. Passada a fase de ausência de reflexão, apercebi-me de como preciso de me concentrar no pouco tempo que tenho para fazer o muito planeado.

às 17h é noite

e às 8h também.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Quando no fim da década de 80, o descontentamento em alguns países africanos se revelou de forma mais clara, as razões que o explicam são a revolta contra um mau funcionamento dos sistemas unipartidários ou a procura de um sistema político democrático? Procuravam as pessoas apenas que tudo voltasse a funcionar como antes da crise petrolífera ou desejavam um mercado liberal, o direito ao voto e princípios de liberdade individual? Em que é que a abordagem democrática ocidental das últimas décadas difere - nos seus objectivos e metas estruturais em África - da actual abordagem da China ao continente?

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Já estás a tentar

Todos os dias passo pelo menos duas vezes em frente ao bouquiniste da Market Street. Já se tornou hábito olhar para a montra e espreitar lá para dentro. O alfarrabista, de nome Bill, é o mesmo que ao sábado expõe os livros e postais antigos (que passo vários minutos a ver) nas mesas, no meio da rua. De tantas vezes nos cruzarmos, e de tanto tempo que passo a olhar para as fotografias antigas, passámos a cumprimentarmo-nos. Mas nunca antes tinhamos falado. Ontem, de regresso a casa, mesmo tendo passado em velocidade em frente à montra, decidi parar, recuar e voltar a entrar no muito pequeno espaço. Todas as paredes tem prateleiras do chão ao tecto, preenchidas com vários livros. As lombadas distinguem-se pelas cores, pelas alturas, pela largura de cada uma delas. Pedaços de papel já acastanhados estão colados em algumas prateleiras, escritos à mãos, indicando 'History', 'Religion', 'Military', 'Fiction'. Os melhores livros, os mais antigos, com capas castanhas duras e às vezes com reflexos dourados, estão ao fundo numa prateleira pousada na mesa onde o senhor está sentado. Aliás, se ele estiver sentado mal o vejo quando passo na rua, a prateleira dos livros mais caros tapa-lhe a cabeça. No centro da pequena loja, há uma mesa com alguns livros, os mais baratos e para os quais olho sempre com mais atenção. Depois de ver as lombadas de quase todos, e de folhear um ou outro, dedico-me às prateleiras. Frequentemente procuro os livros que não têm nada escrito nas lombadas ou aqueles que, de tão pequenos, ficam entalados entre os maiores. O silêncio sabe bem, associa-se à idade dos livros e faz-me folheá-los com mais cuidado ainda. A madeira do piso do andar de cima range por vezes, resgatando-me de um dos livros. Quando ontem recuei no meu caminho e entrei de novo, lá estava o senhor com quem me cruzo na rua, rosado junto aos olhos e de sorriso simpático. "Já não me lembro o que está a estudar", disse-me. Nunca lho tinha dito, mas agi como se antes tivéssemos falado sobre isso. Perguntou-me mais sobre Portugal, pediu-me que rapidamente resumisse a história política do país, que lhe lembrasse o que era Portugal durante a Espanha de Franco. Disse-me ter sido professor de inglês. "Era bom a dizer se um livro prestava ou não", contou-me, ao mesmo tempo que limpou o pó de dois dos livros caros, fechados e inclinados na prateleira pousada na mesa. "Nunca fui bom a produzir. A escrever, quero eu dizer. Sempre fui muito crítico sobre tudo aquilo que fazia e portanto nunca nada estava bem. Olhava para o que escrevia, percebia o que tinha de mudar e, assim que terminava, relia outra vez e precisava de mudanças. Nunca conseguia acabar". Alargámos a conversa ao jornalismo de hoje, ao que se escreve e sobretudo ao que não se escreve. Falámos de gerações e de expectativas, confessando-lhe não fazer ideia do que estará para vir daqui a uns meses. "Mas pelo menos vou tentar conseguir melhor", respondi-lhe. Ele recuperou o seu sorriso simpático, que até então eu só conhecia da rua, e disse-me: "But you are already trying". Esqueci os livros e disse-lhe que voltaria em breve. Antes de sair, ele agradeceu-me a conversa. Nunca antes um passo atrás tinha sido tamanha recompensa.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Les Moments Sacrés

Comprei os bilhetes de comboio pela internet e reservei especialmente um lugar à janela, para que desde o primeiro minuto fora de St Andrews pudesse absorver a Escócia. Aguardava uma viagem longa, que se revelou bem rápida. O calor do comboio, sempre demasiadamente aquecido, tentou embalar-me e enjoar-me também, mas resisti mantendo os olhos bem abertos a todas as novidades. O dia não estava muito frio e havia sol de Inverno, tão típico dos dias portugueses. No dia anterior, no entanto, a chuva tinha transformado as minhas botas em duas pedras como se as trouxesse atadas aos pés. Concluí que só umas galochas resolveriam o meu problema, ainda agora no início. Chegada a Edimburgo, fui rapidamente engolida por uma bela cidade, de edifícios antigos e altos, dispostos em colinas. Muita gente nas ruas e muitas línguas diferentes. Imediatamente ouvi o som de uma gaita-de-foles que, descobri, viria a ser quase permanente durante o fim-de-semana. Deixei-me levar pelas ruas e pelo sol, percorrendo pela primeira de muitas vezes os jardins da Princes Street. Extensos relvados, pontuados pelas árvores com as habituais cores de Outono. Uma linha de bancos de madeira, estrategicamente colocados de frente para os grandes relvados, trazem para um mesmo jardim diferentes histórias. Pessoas sozinhas ou acompanhadas, de olhos fechados ou concentradas no movimento alheio, a comer ou a beber um café (sempre com leite) nos já habituais copos take-away com um buraquinho na tampa de plástico. Encontrei duas das personagens do livro que estava a ler (até ter de o devolver na biblioteca). Ashima e Gogol, mãe e bebé, ela sentada num dos bancos de madeira, ele a dormir no carrinho, eventualmente enquanto esperavam pelo pai do bebé, Ashoke, que trabalharia no centro da cidade. Ela lia, debruçada sobre si própria, se calhar um dos livros bengalis que trouxe com ela anos antes de abandonar a Índia. (The Namesake, Jhumpa Lahiri.)


Horas mais tarde, viria a conhecer Jean-Marie Téno, realizador de vários documentários sobre a história colonial e pós-colonial de alguns países africanos. Nasceu nos Camarões e vive no sul de França. Inserido no Festival do Cinema Africano, assisti a um dos seus mais recentes documentários: Les Lieux Sacrés. O próprio cinema africano dentro de um filme africano: como um homem numa pequena cidade do Burkina Faso criou um cinema local, num espaço que aluga por mês, tentando que o valor cobrado por cada entrada pague o aluguer desse mesmo espaço no fim do mês. História essa cruzada com um outro homem, que se intitula como 'Écrivain public', pressionado durante anos pela responsabilidade de assumir uma profissão que sustentasse a família, uma profissão "técnica", longe da escrita. Até que um dia desistiu de tudo. E passa hoje os dias a escrever num portão de ferro verde, frases que poucos percebem. Uma terceira história completa o documentário: um artesão, dedicado ao djembé, que assume o papel de ligar a música ao cinema, percorrendo a cidade com o seu djembe a anunciar os filmes desse dia. Lugares sagrados, explicou o realizador, "porque não só o cinema local é visto por muitos como um lugar sagrado, mas também porque nas horas livres entre a projecção dos filmes, esse mesmo espaço é utilizado para oração dos muçulmanos que vivem na cidade". Em conversa depois do filme, Jean-Marie Téno confessou-me conhecer bem Lisboa e gostar especialmente de Fernando Pessoa. Perguntei-lhe se desde o início teve noção de como as pequenas histórias que contava resumiam de forma tão concreta o nosso mundo de hoje. "Confesso que quando os conheci,percebi que havia ali alguma coisa de especial. Só não sabia bem o que era. Vim a descobrir e a concluir isso mesmo: como três pessoas numa cidade que ainda conserva o mais tradicional do país conseguiam resumir tantas histórias". Partilhámos o gosto pelas pequenas histórias e ficou prometida uma passagem por Portugal em breve.

Guardo ainda, da noite de dia 23, o regresso ao hostel onde viria a dormir muito pouco. Muita gente nas ruas à noite e uma lua maior do que alguma vez a vi. Percebi que cada um dos bancos de madeira tem uma chapa de metal com uma dedicatória a alguém. Como se cada um dos bancos representasse uma pessoa, recordando a sua vida, obra, carácter, acto heróico ou, simplesmente, a sua existência.



De domingo ficam as pontas dos dedos inchadas dos 0ºC da manhã e os esquilos ainda a usufruir da liberdade que tiveram durante a noite enquanto ninguém lhes ocupou os relvados. Inevitavemente fica a sensação de um segundo aniversário passado longe de casa, valorizando a liberdade, mas questionando se todas estas sensações - nem sempre boas - fazem parte da própria liberdade. Ou escolhes conforto ou escolhes subir o Evereste, concluí. As duas nunca poderás ter, até porque cada uma delas pertence a mundos diferentes.




Ovelhas pequenas

Perguntava-me como é que os bebés aguentam estas temperaturas. Até perceber que as mães os metem dentro de uns babygrows almofadados, transformando os próprios filhos numa espécie de pequenas ovelhas. Lembrei-me de como uma vez o meu irmão, com um ano, foi levado para cima de um palco numa das festas de natal da escola. Meteram-no dentro de um babygrow com um fecho na barriga, para fazer dele uma ovelha em palco, enquanto as educadoras cantavam canções de natal. Ele chorou o tempo todo e estragou-lhes o trabalho. Quando vejo as mães a meter os bebés dentro dos seus fatos, lembro-me do meu irmão e percebo melhor do que nunca porque é que ele chorou o tempo todo.

sábado, 23 de outubro de 2010

Auê

Mais de um mês depois, vou finalmente sair de Cascos. Por pouco tempo, com destino a Edimburgo.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

18h30

Já janto às 18h30. Inicialmente foi difícil perceber como é que às 19h as pessoas se juntavam para ir beber uma cerveja e se deixavam estar até às 21h ou 22h, sem comerem nada. Ou como é que iam para as conferências às 18h e conseguiam não ter o estômago a roncar. Atrevi-me a perguntar: nunca tens fome? E às 19h recebi a resposta: jantei há pouco. Percebi então que eu era a única que permanecia em jejum e que vinha para casa jantar às 22h. Então lá cedi e deixei-me entrar nos horários deles. Janto às 18h30 antes de sair de casa. E é por isso que às 22h volto a estar cheia de fome.

Lá estavam

Enfrentei a manhã, bem cedo, quase ainda de pijama. Vi o sol a nascer, vindo do fundo da rua, enquanto caminhava em passos bem rápidos em direcção ao auditório onde ainda estariam os meus óculos. Fui cedo demais, tudo estava fechado. Dei a volta inteira ao Quad, um quadrado de edifícios antigos, cada um com auditórios e salas, com um belíssimo relvado no centro dessse quadrado. Fui conhecer os espaços envolventes enquanto aguardava que alguém aparecesse. Para além das gordas gaivotas, era só eu. Ligeiramente mais gorda também, não fosse eu insistir em ter um pacote de bolachas, deliciosas e apenas por 51p, no meu quarto. Reparei na perfeição com que os relvados estão aparados, assim como os vários canteiros de diferentes flores. A relva tem toda a mesma altura, transformando-se em tapetes tão apetecíveis que obrigam a ter uma tabuleta a avisar: 'No ball games here'. Voltei a entrar no quadrado de edifícios, enquanto reparava que tudo continuava fechado. Até encontrar uma senhora das limpezas de sotaque escocês que me ajudou: chegou o senhor das chaves, também de sotaque escocês, e abriu-me as portas. Subi as escadas do auditório, enganei-me na fila em que me tinha sentado ontem e por instantes pensei que tudo tinha perdido a piada. Até subir mais uma fila e encontrar os meus segundos olhos, pendurados por uma haste, no exacto sítio onde os tinha deixado. Renasci. Vim com eles postos nos olhos até os guardar na respectiva caixa, já em casa. Mas já que estava mais do que acordada, antes de voltar a casa decidi ir conhecer a manhã de St Andrews na East Sands Beach. Cruzei-me com dois cães, o Charlie e o Willie, a quem os donos dão o que parecem ser pequenos marshmallows, deixando-os a lamber os bigodes. Percebi pela conversa dos donos que os bandos de pássaros estão a abandonar esta zona devido ao frio. E realmente lá iam eles no céu, em linha, formando setas que mudam de direcção, ainda que a dos pássaros continue a ser a mesma. Numa manhã em que a temperatura me fez inchar as pontas dos dedos das mãos.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Defeitos

Tenho os mesmos óculos há uns anos. Não é consensual eu dizer há quantos anos os tenho, porque há sempre quem me desminta e diga que tinha outros nessa altura ou que tinha os mesmos noutra altura. Posso dizer que os tenho há, pelo menos, cinco anos. Tenho dado conta que por mais que os limpe com o pano devido, no centro de cada lente há um aglomerado de pequenos riscos que, por vezes, transformam as imagens que estou a tentar ver. Acabo por ter de movimentar a cabeça para alcançar a imagem sem a aberração que os meus segundos olhos criam nas pessoas. Desde sempre, tenho o hábito de os pôr onde calha. Pendurados nas camisas ou num bolso, agarrados ao cabelo, presos nas argolas de um caderno ou em qualquer outro sítio onde aparentemente não se risquem (nunca os deixo fora da caixa azul de plástico, se os puser dentro da minha carteira). Eu própria me pergunto como é que ainda não os perdi. Apanho um susto um dia, guardo-os melhor no dia seguinte. Mas erro sempre e volto ao defeito de os pôr em qualquer sítio. Os óculos anteriores, cinzentos e não roxos como estes, tiveram um triste fim. Numa bomba de gasolina, saí do carro, trazia os óculos ao colo e decidi pousá-los no tejadinho do carro só para esticar as pernas. Estiquei também os braços ao ponto de colocar os dedos na porta de trás do carro que estava aberta. Perante o triz em que não fiquei com três dedos definitivamente esticados, tentei lembrar ao meu irmão a necessidade absoluta em ter mais cuidado com tudo o que o rodeia. Mas quis certificar-me de que se apercebia de como as consequências de não olhar para o que faz podiam ser graves. A concentração no meu discurso fez-me esquecer os óculos. Terão aguentado até aos 50 km/h, antes de entrarmos na auto-estrada novamente. Acabaram ali, embora ainda tenha sofrido algumas horas a rebobinar o meu dia para trás, até perceber onde os tinha visto pela última vez.

Acontece que hoje houve uma conferência sobre se a violência contra injustiças pode ser justificada. Na cadeira à minha frente desenrolou-se uma luta contra a tosse, uma luta que eu acompanhei de mais perto do que a própria conferência, infelizmente. Analisei cada gesto e movimento da pessoa que mais valia ter ficado em casa, mas que veio à conferência e passou o tempo a lutar para não tossir. Cada vez que a tosse falou mais alto, ela agarrava no casaco castanho, com forro de seda ou a imitar seda, com etiqueta da Marks & Spencer, e tossia para o casaco. Em particular para uma manga, a esquerda. Para além de todo o tipo de actividades menos próprias com o cabelo, que me desconcentraram absolutamente e me obrigaram a tirar a pastilha da boca, de tal forma estava já enjoada. As unhas eram enormes e serviam para tudo, o que me criava arrepios nos braços como nunca antes os tive. Acabei por me encostar na cadeira, tentar ouvir o que se discutia na sala e tirei os óculos para que não visse mais do que queria.

Arranjei um sítio óptimo para os óculos: pendurados por uma haste na mesa recolhível à minha frente. Já tinha descoberto isso antes e achei bem pensado. Passou-me de raspão a ideia de poder esquecer-me deles ali, mas concluí que por me ter pensado nisso, isso já não aconteceria. Finalmente consegui concentrar-me na discussão que decorria na sala e abstrair-me da tosse reprimida.

Infelizmente precisei de quatro horas para perceber que os meus óculos ficaram pendurados por uma haste na mesa. Não me adianta chorar, apenas espero que amanhã ainda lá estejam. E se ainda lá estiverem, garanto que nos próximos tempos andarão sempre arrumados.

Low Mood Study

Esta faculdade também tem destas coisas:

I am a PhD student in psychology from the University of St Andrews, looking at how mood affects our ability to solve personal problems. I am interested in individuals who are currently experiencing low mood. If you feel you fit this description, I would be particularly interested in hearing from you. This two-part study will take about 2 hours to complete over two 1-hour long sessions. Those taking part in the study will receive £5 per hour for their participation.


interessante como chego à conclusão que não tenho nenhum conceito que defina a sensação que um grau (centígrado) escocês provoca. se utilizo a concepção de 'muito frio' para designar um grau português, então deixei de ter conceito para definir isto. preciso de me repensar ou, então, arranjar palavras novas.

Nova profissão

Acordei pela primeira vez com o meu termómetro de publicidade ao concelho de Fife a marcar, dentro do quarto, nove graus. Lá fora, um. Percebi que os vidros estavam totalmente embaciados e os três postais que tinha colados no vidro estavam já engelhados. Abri até cima a cortina e vim a descobrir uma nova profissão. Detectei demasiado movimento na janela à frente da minha, da qual devo ter uns cinco metros de distância. Empoleirados em enormes escadotes, dois homens limpavam os vidros exteriores das casas. Com toda a velocidade e perfeição, como quem tem várias janelas para limpar. Eram 8h30m e eles penduravam os panos nos bolsos de trás das calças, enquanto passavam a borracha no vidro. Perguntei-me se viriam limpar a minha janela, algo que me manteve em suspenso por alguns minutos. Não aconteceu. Seguiram pela rua fora, a limpar os vidros das casas. Espero conseguir perceber nos próximos dias se isto acontece sempre que as temperaturas baixam o suficiente para embaciar dramaticamente os vidros ou se é, apenas, uma actividade pontual do concelho de Fife, tão publicitado no meu termómetro.

Hoje, faria anos

Uma das minhas actividades quando não estava a fazer álbuns com a minha avó, a desenhar as mãos uma da outra numa folha de papel ou a fazer as minhas sopas com ervas e patas de formiga no jardim, era espreitar os trabalhos do meu avô na garagem. A garagem sempre foi um lugar encantador, talvez por ter pouca luz ou pelas muitas caixinhas e frascos de vidro espalhados pelas prateleiras onde ele guardava todo o tipo de parafusos, botões e sei lá eu mais o quê. No fundo da garagem era onde ele trabalhava, sentado num banco alto de madeira que, normalmente, ele próprio fazia. Se eu pedisse, ele sentava-me no banco e dava-me pedaços de madeira dos quais eu tentava fazer alguma coisa. Havia uma grande máquina, que ainda hoje não sei o nome, na qual ele rodava uma roldana e conseguia que ela segurasse tudo o que ele quisesse. Eu fazia o mesmo, com os pedaços de madeira. Fascinavam-me também os lápis de carvão que ele utilizava. Eram azuis claros por fora, normalmente já pequenos. Ele afiava-os com uma navalha, não tinha afia, e no topo do lápis não havia uma borracha. Era uma pequena vassourinha para varrer as aparas da borracha. Pendurado junto das chaves de parafusos e martelos, havia outra coisa. Uma régua cor-de-laranja, bem larga, com os formatos de várias bolas, de diferentes tamanhos. Ele utilizava a régua para assinalar bolas nos mapas. Eu utilizava a régua para desenhar as bolas numa folha, enchia-a de bolas de todos os tamanhos. Desenhava e apagava, para poder utilizar a vassoura. Vezes repetidas. E depois pintava as bolas. Quando ele não estava na garagem, estava no escritório a trabalhar. Pedia-lhe a régua e umas folhas, a vassourinha e um furador. Furava uma folha até não poder mais ou até encher o depósito do furador. Depois, espalhava as bolinhas todas para grande desespero do meu avô, que me obrigava a apanhá-las. Só me foi difícil apanhá-las enquanto ele não me ensinou que se eu molhasse a ponta do dedo na língua primeiro, e depois as colasse no dedo, era bem mais rápido. Não voltei a ver a régua, nem os lápis com vassoura. Nem o voltei a ver a ele, mas ainda hoje apanho as bolinhas de papel como ele me ensinou. Hoje o meu avô faria anos.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Depois de uma falha geral da internet, que já ameaçava acontecer desde ontem, tive de fazer tudo aquilo que adiava há umas semanas. Olhar para o computador como se fosse um buraco fechado, fechá-lo e actualizar a resma de jornais. Já tenho um cesto especial para os jornais, é de plástico roxo e dá imenso jeito. Numa metade tenho os que quero guardar por tempo indefinido, recortes de textos que quero - um dia - ler com cuidado, e na outra metade os que ainda não consegui ler. Perante o facto de ter chegado a casa esganada de fome às 19h e ter jantado como se fossem 23h, dei por mim às 20h com todo o tempo livre. Contrariando a tendência dos últimos dias. Lá fora, a temperatura agrava-se e a vontade de sair reduziu-se, depois de um dia quase inteiro na rua. Distribui os jornais em diferentes montes e li-os. Concluo que devem ter redacções enormes porque os jornais de fim-de-semana são espantosamente um aglomerado de suplementos. Home, work, garden, style, travel, education, review, best movies. Para além da revista. Folheei os muitos G2, por vezes também desinteressantes, algo que leva a crer que isso acontece até aos melhores. Recortados os jornais, saltaram para o meu saco de pano beje, do supermercado, o tal que comprei logo nos primeiros dias para entrar no espírito da ida às compras. A verdade é que raramente o uso, porque a decisão da ida às compras não é tomada nunca com muita antecedência. Amanhã levo o meu saco e deixo os jornais na reciclagem, que é aliás um ponto curioso desta cidade. Primeiro, não me parece que muita gente recicle o que quer que seja. Segundo, pagam-se multas se deitarmos o lixo nos caixotes dos outros [o desconhecimento fez com que passasse os primeiros dias a infrigir a lei]. O único ponto de reciclagem está ao fundo de uma das três ruas que, por sorte, até é a minha. Terceiro, achei um caixote para papel aqui perto e penso que é lá que vou deixar os jornais amanhã. Não será de ninguém, concluo desde já. Esse caixote, aliás, fica mesmo ao lado da casa do senhor que arranca com velocidade na sua bicicleta logo pela manhã. Arrisquei a perguntar quem é que ele era, num dia em que falávamos de rosas amarelas e eu me lembrei que em frente à porta da casa de onde ele sai com a sua bicicleta, há um canteiro com enormes rosas amarelas. São bonitas, mas não particularmente, são do tipo de rosas que estão sempre demasiado espapaçadas. Soube então que o senhor tem um historial de vida interessante, filho de um inventor escocês. Curiosamente, lembro-me agora, ontem caminhava para a faculdade com as calças dentro das botas, quando percebi que não estava a funcionar. Parei para as tirar para fora das botas, próxima do canteiro das rosas amarelas, e assisti numa fracção de segundos a uma conversa entre duas pessoas. Uma delas era uma senhora com uns sessenta, ou talvez cinquenta e muitos, nunca consigo distinguir, e o outro era um senhor de bengala (talvez me persigam as bengalas). Só apanhei o momento em que o senhor diz 'Prazer em conhecê-la, eu tenho 94 anos'. A senhora não se mostrou muito admirada, tendo tido o descaramento de lhe responder 'Pois, há um tempo vivia aqui uma senhora com 98'. Segui caminho, ainda que com frio nas pernas, a pensar em como talvez ele pudesse, daqui a quatro anos, voltar ao mesmo sítio e ter a mesma conversa.

domingo, 17 de outubro de 2010

pelo tempo, sem tempo

à sexta-feira inicia-se a luta contra ou pelo tempo. dou por mim demasiadas vezes a lutar contra o tempo, em tão pouco tempo. passam-se dois dias, envolvida nas muitas leituras que não deviam ser tantas e nunca deviam passar a barreira do prazer da leitura. voltar a sentir a véspera da ida ao quadro na primária. era desnecessário. portanto, procuro novamente o equilíbrio entre o prazer da leitura, o tempo que passa e tudo aquilo que queria ter feito e não fiz.

mudei lâmpadas, limpei candeeiros, fui às compras. acordo cedo e começo a trabalhar tarde. acordo cedo e saio de casa tarde. o álbum já não estava no alfarrabista e começo a conhecer de cor os livros expostos na mesa, no meio da estrada, ao sábado de manhã. encontrei café a £1.25, bebi-o sem açucar, pior do que café queimado numa tasca perdida. enquanto o bebia, as asas do saco de plástico que tinha enterradas no braço esquerdo rasgaram-se. apanhei tudo do chão e vim para casa.

não me consegui abstrair da estupidez de uma saída à noite nesta cidade, que me fez lembrar o tempo de erasmus. quatro anos é tempo suficiente para que o mundo seja outro. hoje acordei e trabalhei arduamente. páro agora e pergunto se andarei a controlar e equilibrar bem o meu tempo. a resposta é claro que não.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A arte dos álbuns

Ainda está no bouquiniste o álbum antigo de fotografias, verde escuro, com um cordão amarelo que acaba com dois pedaços de linhas esfarrapadas, que avistei desde que saí da porta de casa, no carrinho de madeira com livros que o senhor põe sempre à porta da loja. São fotografias antigas de uma viagem, feita em Inglaterra, intercaladas com os nomes das cidades e dos lugares cuidadosamente desenhados a carvão e pintados por cima com tinta preta. Na primeira página do álbum, aparece um mapa da zona, com algumas linhas traçadas a cores diferentes. Custa £3.95. Folheei-o de uma ponta à outra na primeira vez que o vi. As folhas são duras, como se fossem de cartão, e os quatro cantos de cada uma das fotografias estão presos com triângulos especialmente indicados para o efeito. A minha avó também os tinha, era com esses mesmos triângulos que preenchia os álbuns, não só com fotografias, mas com recortes de jornais, panfletos, pequenos textos recortados dos panfletos, bilhetes de avião, recibos de restaurantes, lojas ou museus. Quis comprar o álbum, pelas recordações que me trazia. Mas o dinheiro que tinha na carteira era para os dois cafés que iria beber durante o dia, unicamente porque tinha dois encontros já combinados em dois cafés diferentes. Passaram-se dois dias e o álbum continua lá. Amanhã é sábado - nem sei como - e é o meu dia de alfarrabistas. Espero que ainda lá esteja no mesmo sítio.

Procura licenciatura? Aqui é gratuita.

Descobri que as propinas para estudantes de licenciatura, da União Europeia, são gratuitas. Simplesmente gratuitas. Escoceses e união-europeus não pagam, embora os ingleses paguem (!). Os estudantes de países não-UE pagam por todos os outros.

Podem conciliar quase todas as áreas de estudo que quiserem, como por exemplo, para alguém indeciso: química e literatura francesa.

Outros amigos da rua

Segui pelo passeio da Market Street, com obras em vários pontos da rua, do lado contrário ao do supermercado. Por entre carros e pessoas, ouvi um acordeão. Por instantes, a familiaridade de ouvir acordeões nas ruas de Lisboa - nem sempre pelas melhores razões - fez com que a curiosidade se aguçasse a ela própria. Olhei para o lado contrário e não vi nada. Mas continuava a ouvi-lo. Talvez por ter despertado o meu sentido auditivo nesses instantes, consegui ter a percepção assustadora de ouvir um tremendo arroto de um senhor das obras. Instintivamente procurei saber de onde é que o som teria vindo e deparo-me directamente com um homem de fato-macaco e um capacete de protecção branco, uma vez mais com enormes olhos azuis, já com pelo menos meio século de vida. Envergonhado, coisa que me deixou mais admirada que o próprio ecoar do som que ele emitiu, pediu-me imensas desculpas. "I am so sorry, miss". Perante tal arrependimento, tive vontade de lhe dizer 'no problem', mas não achei que fosse a resposta mais acertada. Quando já vinha de regresso para casa, desta vez no passeio do supermercado, oiço novamente o acordeão. Sentado no degrau da porta de uma casa, um senhor tocava acordeão. Pelos traços, pareceu-me ser do leste da Europa. Tinha um cestinho de verga vazio nos pés e, simpaticamente, riu-se. Talvez tenha sido a única pessoa a dar pela presença dele naquele sítio e respondi à simpatia. Por um instante, mesmo que não pelas melhores razões, senti-me perto de Lisboa.

Do yourself a favor

"Seen much of this world?", Ghosh asked Ashoke [...].
"Once to Delhi", Ashoke replied. "And lately once a year to Jamshedpur". [...]
"Not this world", he said. "England, America".
"My professors mention it from time to time. But I have a family", Ashoke said.
Grosh frowned. "Already married?"
"No, a mother and father and six siblings [...]".

Ghosh shook his head. "You are still young. Free", he said, spreading his hands apart for emphasis. "Do yourself a favor. Before it's too late, without thinking too much about it first, pack a pillow and a blanket and see as much of the world as you can. You will not regret it. One day it will be too late."

Jhumpa Lahiri, The Namesake

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Em conversa com um investigador italiano a trabalhar em St Andrews há um ano, depois de ter passado por Inglaterra e pelos Estados Unidos, perguntei-lhe se tencionava voltar a Itália. "No, it is a hard country". Justificou a decisão pela falta de apoio para projectos de investigação e a falta de reconhecimento. Percebi o que queria dizer, mas ele acrescentou: "Em Portugal, penso que é melhor. Há muitas coisas novas a surgir". Talvez estejam a aparecer coisas novas, é verdade, mas será isso suficiente para considerar melhor que Itália? Disse-lhe que talvez não fosse bem assim. Normalmente estas conversas acabam com a pergunta: 'Por que razão então queres voltar para lá?'. Aliviámos a tensão do regresso aos nossos países de origem com a conversa sobre o tempo. Está frio, mas ainda vem mais. Há pouca luz, mas ainda haverá menos.

Paella ou tapas

Vai haver um jantar com vários pratos, originais de diferentes países - não entre estudantes, mas com os vizinhos da rua. Pediram-me que fizesse paella ou tapas, o que me deixou profundamente desiludida. Tive de sublinhar que não eram propriamente pratos portugueses. Conclusão: vou ter de me dedicar profundamente para dar a conhecer a mais dez pessoas aquilo a que, correctamente, se chama Cozinha Portuguesa.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Amigos da Rua

Aos poucos, há pessoas que vou conhecendo apenas por me cruzar com elas na rua. Uma dessas pessoas é um senhor velhinho, que mora umas cinco casas a seguir à minha. Com mais de oitenta anos - ou assim parece - sai de casa de manhã cedo, por vezes à mesma hora que eu. Encontro-o a trazer a sua bicicleta para fora de casa. A porta está mais recuada na rua, por baixo de um arco, com um pequeno canteiro à frente. E ele, enrolado sobre si mesmo, traz já a mochila às costas. Uma mochila muito colada às costas, azul e com alças da mesma cor, que fica mesmo aconchegada a si mesmo. E tendo em conta o quão enrolado anda sobre si - como se tivesse adquirido a posição em que anda na bicicleta - sobe num ápice, equilibra-se e arranca pela loucura que é o chão desta cidade. Se digo arranca, é porque ele arranca mesmo com uma considerável velocidade, para um destino que ainda não sei qual é. Provavelmente a biblioteca, fazendo-me lembrar um outro senhor, esse português, com quem me cruzava várias vezes numa pequena biblioteca em Lisboa. Chegava cedo, encasacado, com uma saca a tiracolo. Andava rápido, embora os passos já não fossem leves. Levava sempre uma mão no peito, a segurar a alça da sua sacola e sentava-se sempre na mesma mesa redonda. Abria grandes livros e copiava, tudo à mão, numa letra impecável e inclinada, como normalmente são as letras de quem escreve há tanto tempo. Assoava-se frequentemente a um lenço de pano, que embrulhava e guardava no bolso. E, por vezes, tirava do outro bolso um saquinho de papel, onde guardava outro lenço com o qual limpava os lágrimas dos olhos. Lágrimas de olhos cansados, apenas, porque escrever páginas e páginas, antes e depois de sair para almoçar, cansa qualquer um.

Cruzo-me ainda com um rapaz que, embora com abrigo, é a única pessoa que por vezes se senta a pedir esmola. Vejo-o no supermercado. Arrasta os pés e tem o cabelo bem rapado, tornando ainda mais visíveis algumas marcas na cara. Não reparei no que comprou, porque me fixei nas últimas palavras quando pagou a conta. "Fique com o troco". Pouco depois, vi-o sentado nuns caixotes, à porta do supermercado, a pedir umas moedas. Talvez por nos cruzarmos tantas vezes, e por eu cometer o erro imperdoável de olhar demasiado para os movimentos das pessoas, acaba por me dizer sempre o que aparenta ser um 'hi' ou 'hey' ou 'hié'. Em resposta, emito um som semelhante.

Outro amigo da rua é o carteiro. Toda a gente se cumprimenta e sorri se os olhares se cruzarem por mais de três segundos (na Bélgica isso nunca me acontecia). Espreito sempre para o carrinho do carteiro - o tal que oiço a encravar-se nas pedras - esperando ver o símbolo dos correios portugueses impressos num caixote. Talvez por isso ele me pergunte se estou à espera de alguma coisa. Sorrio e disse que sim.


Discutimos nos últimos dias a paz liberal. Que responsabilidade têm os Estados ocidentais na gestão e resolução de conflitos? Há responsabilidade humana nessa intervenção? Deve a moral fazer parte de operações de peacebuilding? Até que ponto não é já essa moralidade, por si própria, fruto de valores e de uma cultura? É a moral construída socialmente? O que deve definir a intervenção ou não-intervenção de um Estado num conflito?

Num dos textos sugeridos, a influência dos media internacionais é referida, apontando uma espécie de "obsessão com a hipocrisia". "The charge of hypocrisy resonates powerfully in the modern global media, and those powers which present themselves as idealistic are particularly vulnerable to it. [...] The international media and diplomatic response to the existence of the Guantanamo facility has been thunderous and, at least until lately, continous; Russia's atrocities in Chechnya, in contrast, have received only sporadic attention and occasional, and utterly ineffectual, criticism. The reasons for this are complex, but surely one critical factor is that the United States presents itself as a moral actor, while Russia does not pretend to be anything other than ruthless". Independentemente de ser um exemplo acertado ou um argumento suficiente, o autor acrescenta: "In modern democracies, a blackened reputation and a compelled resignation from public office typically is the worst penalty for failure." (C. Dale Walton, "The Case for Strategic Traditionalism", International Peacekeeping, Nov 2009)

Uma das discussões recentes terminou com a questão se a sociedade - as pessoas, em específico - não poderá ser mais liberal que o próprio governo que, supostamente, a representa. E de outra conferência fica a conclusão: "Liberal peacebuilding is not liberal enough".

AGA, o fogão

Ontem fiquei a saber que no ano passado nevou durante um mês inteiro em St Andrews. E soube ainda que a partir de fim de novembro só terei luz do dia entre as nove da manhã e as duas da tarde. Portanto, hoje quando acordei - mais cedo ainda - abri as cortinas o máximo que pude e dei por mim a valorizar a luz, mais do que nunca. Reparei que o termómetro que tenho junta da janela - publicidade ao 'concelho' de Fife - marcava menos que nos dias anteriores. Dez graus dentro de casa era o que o início do dia de hoje ainda oferecia. Quanto ao sol, não o vejo há dois dias.

E estamos prestes a celebrar o Aga cá de casa. É sempre ligado no dia 10 de Outubro, este ano arranca com uns dias de atraso. Mas já está pronto. Até já tenho o 'Aga book' em cima da minha cómoda, por empréstimo, para aprender a cozinhar nele. A partir de hoje parece que teremos melhores sopas, mais calor e roupa seca mais depressa. O senhor que o veio arranjar, depois de ter pedido outro café porque o primeiro tinha um 'fishy taste', perguntou-me se havia cobras em Portugal. Como achei estranha a pergunta, respondi de duas formas: disse-lhe que havia cobras, mas que não as comíamos. Ele olhou para mim, com uns enormes olhos azuis, cerradíssimo sotaque escocês, vestindo um fato-macaco (homenagem aos bons e antigos canalizadores/electricistas, embora estes por cá sejam designados de 'engineers') . "Que tipos de cobras têm vocês em Portugal?". Poderia ter respondido indirectamente, voltando a clarificá-lo sobre a minha área de estudo estar significativamente distante da biologia, que muito admiro. Mas decidi dizer-lhe que temos variadíssimos tipos de cobras, em diferentes zonas do país. Lamento ter inventado a resposta, mas não me pareceu que a conversa estivesse a levar o rumo suficientemente sério. "No campo há cobras venenosas?". Não aguentei e disse que sim. "Em zonas remotas", acrescentei.

Outro pormenor que tento desvendar de dia para a dia: a loucura dos corvos nesta cidade. Com incríveis guinchos, apoderam-se de qualquer resto de comida que haja no chão, ou no meio das gigantes pedras que compõem a estrada. Nunca lhes vejo os olhos e já percebi que se juntam a outros passarões junto da praia em cima de umas rochas e, sem tirarem as patas das rochas, abrem as duas asas e refrescam-se ao vento. Depois imagino que regressem ao centro da cidade.

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AGA (versão da Wikipedia):

The AGA cooker is a stored-heat stove and cooker invented in 1929 by the Nobel-Prize-winning Swedish physicist Gustaf Dalén (1869–1937), who was employed first as the chief engineer of the Swedish AGA company. The cookers are today manufactured by the Aga Rangemaster Group. Aga (pronounced /ˈɑːɡə/) is an abbreviation of the company name, Aktiebolaget Gasaccumulator. In 1912 Gustaf Dalen lost his sight in an explosion while developing his earlier invention. Forced to stay at home, Dalen discovered that his wife was exhausted by cooking. Although blind, he set out to develop a new stove that was capable of a range of culinary techniques and easy to use. Adopting the principle of heat storage, he combined a heat source, two large hotplates and two ovens into one unit: the AGA Cooker. The cooker was introduced to England and its popularity in certain parts of English society (owners of medium to large country houses) led to the coining of the term "AGA Saga" in the 1990s, referring to a genre of fiction set amongst stereotyical upper-middle class society. Aga cookers can also make a contribution to space heating, although it is not true that they can heat an entire house.


terça-feira, 12 de outubro de 2010

Haverá sempre dias melhores que outros. Fica marcada apenas a belíssima conferência de mais de duas horas sobre o fim da guerra no Afeganistão. Perspectivas não-académicas que trazem o melhor: histórias concretas, experiência específica, soluções enquadradas.

domingo, 10 de outubro de 2010

Ontem foi dia de arranjo de flores cá em casa, desde muito cedo. O telefone toca antes das nove, as portas abrem-se, as vozes com sotaque mais ou menos refinado entram e iniciam-se as múltiplas actividades. Faz-se café, partilham-se contactos, tiram-se fotografias, vai-se às compras e, no fim, arruma-se o dia.



Já me tinha cruzado com ele na rua, percebi que tinha nome de gente. Com dois centrímetros de pata, entrou cá em casa e fez uma ronda para conhecer o sítio. A dona, uma impecável senhora de gabardine vermelha, trazia a sua bengala-muleta, com a qual lhe indicava por onde não devia andar. Umas vezes apanhava suavemente com ela na barriga, outras vezes conseguia acertar-lhe numa das minúsculas patas. Chama-se Brian e tem dez anos.


E como ao sábado os alfarrabistas estão abertos, dispondo os livros em mesas no meio da estrada quando o tempo o permite, lá me lancei na deliciosa procura de livros. Tudo pode ser muito caro cá, mas os livros em múltipla mão são muito baratos. Concedo-me a liberdade de gastar algumas libras. E, desta vez, trouxe para casa uma edição do War and Peace, de Leo Tolstoy, os três volumes num livro, pequeno, impresso em 'India Paper'. Tem uma pequena dedicatória na capa, assinada em 18 de Março de 1944. "Shirley from Barbara". Na aba da sobrecapa de papel verde, está um comentário de Maurice Baring - an English man of letters, que escreveu sobre a guerra entre o Império Russo e o Império Japonês, na Manchúria em 1904-5, para o Morning Post. Sobre a obra de Tolstoy, disse: "For the first time in an historical novel, instead of saying 'this is very likely true', or 'what a wonderful work of artistic construction', we feel that we were ourselves there; that we knew those people; that they are a part of our very own past".

sábado, 9 de outubro de 2010

O inconfundível som

Andámos durante vinte minutos, a uma velocidade estonteante, que eu tentei acompanhar sem me queixar. Se o dia anterior tinha sido de sol, o dia de ontem trouxe frio e uma chuva minúscula. A única coisa boa dessa chuva é que deixa milhões de gotinhas na roupa e, quando passamos por baixo de um candeeiro na rua, transformam-se em pontos de luz. Passada essa fase simpática, a chuva colou-se ao meu cabelo e fez com que tudo parecesse tão molhado como se fosse uma chuva a sério. O destino era a aula de gaita-de-foles, no Madras College, um bocadinho afastado do centro da cidade de St Andrews. Andei em passos mais largos que os meus, enquanto me assoava a um amarfanhado lenço, tão encharcado quanto o meu cabelo. E a minha atenção tinha de estar concentrada no tapete escorregadio de folhas, que caíram por estarem secas, mas que se transformaram com a água da chuva. Finalmente chegámos, já de noite, às 18h45, e desde uns tantos metros de distância conseguia ouvir o som inconfundível das gaitas-de-foles.

Numa espécie de ginásio da escola estavam alinhados mais de quinze miúdos, uns com gaitas-de-foles, outros com tambores. Estavam todos de costas quando entrei, com um senhor enorme, de olhos encovados, mas de conversa simpática, sentado numa cadeira bem lá no fundo, à frente de todos. Rapidamente começaram a tocar, com os movimentos definidos e acertados. E aí sim, torna-se bem claro que é impossível abstrairmo-nos daquele som: entranha-se e arranca-nos do nosso confortável e realista lugar.

Enquanto tocavam, marcharam, deram a volta e caminharam lentamente na minha direcção. À frente, vinham miúdos de nove e dez anos, baixinhos, louros, com camisas azuis claras fora das calças azuis escuras. Enchiam as pequenas bochechas e esvaziavam-nas rapidamente, enquanto marchavam e faziam as gaitas-de-foles lançar tremendos sons. Repetiram a música várias vezes, sob indicações do senhor de olhos encovados que batia um dos pés enquanto eles tocavam. No meio da banda, havia gente mais velha a tocar. E, mesmo no centro, um altíssimo e distinto homem louro, aparentemente deslocado do restante grupo, tocava num enorme tambor que trazia pendurado com uma estrutura metálica ao peito.

Por instantes pararam para descansar. Os dois mais pequenos vieram pousar as gaitas-de-foles, mesmo ao meu lado, enquanto bebiam água e trocavam umas palavras. Cheios de sardas no nariz e de cabelo desorientado, comportavam-se como dois senhores, com a responsabilidade de tocarem um instrumento com tanta história, difícil de tocar, e exigente para pulmões tão pequenos. De regresso aos ensaios, juntaram-se mais dez miúdos de diferentes idades, dando início ao que seria um grupo de mais de trinta, dispostos em várias filas, a tocar o mesmo. Os braços, maiores ou mais pequenos, apertavam o fole, enquanto seguiam enchendo as bochechas.

Troquei umas rápidas palavras - difíceis de perceber - com o senhor que batia um dos pés ao som da música. Uma hora depois, preenchida pelo som que me acompanharia nos ouvidos até à manhã de hoje, vim-me embora. E descobri como é interessante que, ainda hoje, se aprenda a tocar gaita-de-foles em algumas escolas escocesas, mesmo que a sua origem esteja no início do século XV. E, desde cedo, estiveram ligadas ao exército (foto: 15ª divisão escocesa da 7th Seaforth Highlanders, na Operação Epsom, durante a II Guerra Mundial, a 26 de Junho de 1944).


quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Mote: origem

"Tenho de saber o que é que vocês, com menos 100 anos que as restantes pessoas, estão aqui a fazer". Foi a abordagem que tivemos, enquanto eu comia um canapé. Não consegui dar a segunda dentada e fiquei com o resto pousado na ponta dos dedos durante o resto da conversa. De nome desconhecido, interrompeu uma conversa e aproximou-se de nós. Cabelo branco, simples, óculos e, em gestos rápidos, capaz de comer um canapé grande de uma só vez. Explicámos que estamos a estudar aqui, que fomos convidadas para o evento. Perguntou-nos de que cidades vínhamos. Viena e Lisboa. Tinha uma história interessante de cada um dos países, surpreendendo-nos com a viagem na Transilvânia na qual pensou que fosse morrer [isto porque a Roménia entrou na conversa]. "Se calhar ficar impressionadas com o que vou contar. Sabem com quem vou estar em breve? Com o Coronel". Por mais que quisesse saber de quem é que ele falava, não consegui disfarçar. "Perguntam-se: que coronel? Pois, o da tenda!" Os cérebros trabalharam o mais que puderam. "O Kadhafi. Aliás, o filho do Kadhafi. Um deles". Justificou a razão, contou outras histórias, disse palavras em várias línguas. Tinha uma forma sincera de ser, as histórias eram justificadas e sustentadas, e em momento algum transpareceu o que poderia ser apenas a vontade de impressionar as únicas duas pessoas que tinham menos de cinquenta anos. "Quando era jornalista, fiz essa viagem ao Uganda e à Namíbia". Percebi então de onde vinham as histórias.

Viena e Lisboa voltaram a ser mote de outra conversa. Desta vez, para ficarmos a saber como em dez semanas, há quarenta anos, um actual director de hotel fez uma longa viagem num mini, para conhecer a gastronomia europeia. Lisboa fez parte do roteiro. Conheceu a Maria de Lurdes Modesto [nome que pronunciou correctamente] e não se esqueceu do arroz doce.

Paul Wilkinson, fundador do departamento de Relações Internacionais de St Andrews, fez parte das nossas curtas e interessantes conversas. Até que fomos as últimas a sair da festa, depois de ter encontrado um senhor americano, de uma fundação de caridade, que viveu em São Paulo e falava português.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Porque está lá

Ontem, depois das aulas, explorámos os países de cada um e a importância de falar outra língua que não a nossa, tudo ao sabor de Sagres (tem já alguns adeptos entre austríacos, americanos e indonésios). Esvaziados os copos, acertadas as conversas e estabelecidos os próximos encontros de trabalho, cada um seguiu a sua vida. Ainda antes que o dia acabasse, fui ao cinema. Uma pequenina sala, com pipocas nas cadeiras, trouxe-me a história de George Mallory, alpinista britânico que terá escalado o Evereste pela primeira vez (1924). Mais do que isso, é a luta incessante entre o sossego e conforto, por um lado, e a incontrolável vontade de cumprir um objectivo. Um dia perguntaram-lhe por que razão queria subir o Evereste e ele respondeu. "Because it is there".

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Borracha de bengala

Acertei na fila do supermercado onde estavam todas as old ladies escocesas. Com as suas saias axadrezadas, compridas, collants e umas botas quentes, forradas de pêlo. Têm sempre um casaco do mesmo género, encerado e haverá nelas, quase sempre, a cor bordeaux. Os antigos cabelos loiros são hoje brancos, mas sempre penteados. Trazem os carrinhos das compras ou então os sacos recicláveis, de tecido, aos quais também já aderi. E, não raras vezes, depois de tirarem as compras do carrinho, para pousar no tapete das caixas, o carrinho cai para trás. Os movimentos, compreende-se, não são muito rápidos e, avaliados os seus perfis, a demora da fila passa à fase de exigir de mim alguma paciência.

Enquanto espero, reparo na moeda de 1p que está junto dos pés da senhora. Elaboro um curto plano para a apanhar. No momento seguinte, aproxima-se disfarçadamente um senhor, como se procurasse alguma coisa no chão, junto de cada uma das caixas. Moedas, talvez. Mas a ideia de o ver baixar-se não me pareceu possível.

Rapidamente, detectou a moeda que já fazia parte dos meus planos. E, nesse instante, com a pouca rapidez que a idade ainda lhe permitia, fez escorregar a borracha do fundo da sua bengala até zona envolvente da posição da moeda. Passando rente às pernas da senhora de botas de pêlo. À terceira tentativa, conseguiu arrastar a moeda quase até si, criando um momento em que se baixou lentamente para a apanhar. A senhora das botas, dando conta do que se passava, inclinou-se para o chão para ajudar. Ele justificou o seu esforço: 'todos os dias apanho uma moeda aqui'.

Eu percebi então que, por ter estado tão atenta ao que se passava, nem me baixei para lhe apanhar a moeda, ficando a observar duas pessoas com quase um século de vida lutando para se baixarem e conseguirem alcançar uma moeda.

E como quem terá começado a andar há mais de 80 anos, apoiado na sua melhor ajuda, o senhor estreitou-se entre as pessoas na fila do supermercado e saiu, sem compras, mas com o dever cumprido.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

À mesa

De encontros espontâneos, numa mesma mesa estão sentados quatro países. Alemanha, Reino Unido (Escócia), EUA e Portugal. Cada um tenta representar o seu da melhor forma possível: pela história, a economia, a política. As dificuldades de cada um, as frustrações, o desemprego, os impostos, as reformas, os subsídios. Dezenas de histórias dos últimos anos correm para uma mesma conversa e, como uma rede, acabam por se entrelaçar umas nas outras. Os amigos de cada um dos quatro cruzam-se e conhecem-se nessa mistura de episódios, mesmo que nunca o venham a saber.

A história de um britânico que decidiu ir trabalhar nas obras em França. Ou a possibilidade de, um dia, ir conduzir camiões para a Austrália, porque pagam bem. Como o café é mau, como na Coreia do Norte as senhoras mais velhas apanham ervas nas bermas das estradas, ou como em Cabo Verde a venda de dez mangas faz o dia. Pelo meio, marcou lugar a história do acto isolado que passei em 2005, quando andava na faculdade e quis trabalhar com vista a uma curta e passageira autonomia. Trabalhei um dia, ganhei €40. Passei um acto isolado, fui às finanças e deixei lá €8. A ignorância fez-me achar que não tinha de declarar €40, portanto este ano paguei uma multa de €50. Conclusão: talvez tivesse sido melhor não ter trabalhado. Terminámos a conversa a pensar que fazemos parte de uma mesma geração de problemas que, mesmo assim, lá escolhe arriscar, imaginando que daqui a uns anos tudo poderá ser bem melhor.

Há Sagres em St Andrews

Nunca me soube tão bem.

Gaita-de-foles

Descobri em pouco tempo que dois colegas meus tocam gaita-de-foles. E um deles nem é escocês. Fizeram-me imaginar uma turma de pequenos escoceses, sentados em mesas e cadeiras de pernas muito curtas, a aprender a tocar amostras de gaitas-de-foles. É essa uma das actividades extra-curriculares, obrigatória em algumas escolas, segundo percebi. Um deles contou-me que aos sete anos tinha de tocar sentado por causa do peso da gaita-de foles. Embora não tenha aderido a nenhum desporto na cidade e me penitencie por não acompanhar amigas no jogging, está decidido. Vou tentar aprender. Mas provavelmente começo sentada.


domingo, 3 de outubro de 2010

Para lá da altura humana

Percebi que só hoje consegui levantar os olhos, com mais atenção, para o que está acima da altura humana. Andei tão fixa em absorver as pessoas, as cores, as formas de agir e vestir, as conversas, que nunca tinha prestado atenção à altura das casas, às chaminés, aos candeeiros nos parapeitos interiores das janelas, aos passarões pousados nos íngremes telhados. Creio que seja um bom sinal.

sábado, 2 de outubro de 2010

" [...] the main reason we study and practise International Relations is to try and create a world where statesmen will not see war as the instrument of choice for change."

Andrew Williams,
Liberalism and War

Free Whisky

Fui espreitar aquela que será a minha casa a partir de Novembro, dificilmente melhor do que a actual. E percebi que, mesmo ao lado da minha futura rua, existe um antigo barbeiro. Sítio muito pequeno, com a largura suficiente para ter uma porta e uma pequena montra. Mas é mais do que suficiente para ter um enorme cartaz a dizer "FREE WHISKY with every haircut".

Livro

Encontrei a loja, na rua onde a tinha procurado antes. Percebi, ainda de longe, que a posição dos livros era diferente. Aproximei-me e procurei, mas sem resultado. Por momentos alimentei a esperança de que o velho livro azul estivesse apenas misturado entre os outros. Mas não estava. Perdi-o. Talvez, simplesmente, não tenha existido. Ou então para a próxima estará lá.

Pela cidade



Existem, portanto, três ruas principais nesta cidade: South Street, Market Street e North Street. Pequenas ruas ligam as três principais, assim como pequenos atalhos que vou explorando à medida que conheço as ruas. Há cinco dias precisava de sete minutos para chegar à faculdade e agora já só preciso de quatro: descobri um atalho.

Para lá das três principais ruas, há uma outra, rente à costa. É onde está o Castelo de St Andrews - atracção turística - assim como alguns outros antigos edifícios. Como de manhã até estava sol - o tempo aqui muda de um segundo para o outro - antes das onze já estava na feira do livro, organizada pela Microfinance Society. Acontece que ainda nem tinha aberto, ou não haja em mim uma certa desorientação com as horas. Tive o tempo certo para percorrer as três ruas, conhecer a praia, passar pelo British Golf Museum, visitar o MUSA (Museum of the University St Andrews), passar por dois bouquinistes, antes de regressar à feira do livro.


Tive a sorte de encontrar um dos livros de uma das minhas cadeiras: Conflict and Development, por £11. Talvez venha a chegar à triste conclusão de que não foi uma pechincha, mas já fico contente em saber que o comprei por menos do que compraria numa livraria.

Como não podia deixar de ser, passei pelo supermercado. Já lá tinha ido deixar o cesto das compras com rodinhas que a dona da casa tinha trazido de manhã e que me pediu que fosse devolver. Fui comprar os cereais da senhora e aproveitei para alargar a minha própria oferta de refeições para os próximos dias. Chegada a casa, e visto ainda estar sol, saí pela primeira vez para conhecer o pequeno jardim.

Nuns nove metros quadrados, cabe um enorme conforto. Num cantinho uma pequena queda de água, posta a funcionar num interruptor dentro de casa. Senti-me de regresso aos tempos em que me encantava com as histórias e descrições da minha avó, sobre cada pormenor do jardim. Vários tipos de menta, rosmaninho (adoravelmente, Rosemary), oregãos e outras ervas, em pequenos tufos, espalhados pelos canteiros. Os muros do jardim estão como que forrados por trepadeiras e no topo de um dos muros, que terão uns dois metros de altura, está um galo de ferro com uma rosa-dos-ventos. Era dia para apanhar as maçãs. Com algum esforço, e algum receio, trepei até ao quinto degrau de um escadote, apoiada numa vassoura. Com os pés do escadote mal enterrados na terra - sempre molhada - previ que a queda pudesse ser terrível visto não haver nada, para além da vassoura, onde me pudesse apoiar. Nem um ramo à mão. Correu bem e lá estão as dez maçãs, algumas delas ainda com folhas, numa grande taça de metal com buracos, esperando que toda a água escorra.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Chegaram!

Desci para almoçar. Tenho sempre de fazer um esforço para saber o que poderei comer, mas não me falta escolha. Achei interessante que a expressão 'comida para um batalhão' tenha equivalente em inglês: foi assim que a dona da casa caracterizou a minha preenchida prateleira no frigorífico. Numa só prateleira, consigo ter absolutamente tudo, meticulosamente arrumado para não ter de extravasar para fora do meu espaço.

Enquanto almoçava, via da janela da cozinha a quantidade de maçãs ainda penduradas na árvore. Acabei por prometer à senhora que, no fim-de-semana, tratava disso (duas semanas a apanhar pêra sob um sol escaldante em Torres Vedras servem para muita coisa). É que a macieira é demasiadamente alta e há belíssimas maçãs vermelhas bem lá no cimo. "Delicious", segundo me garantiu. Ficou assim combinado que, quando não estiver a chover, subo o escadote e vou lá acima buscá-las. E até aplico algumas numa tarte, quem sabe.

E a verdade é que, nos últimos dois dias, tenho vindo a seguir o percurso da minha roupa quente desde Lisboa. Era suposto que chegasse hoje, mas desde quarta-feira que o percurso da minha roupa tinha encalhado em Coventry. Visitei o site dos CTT Expresso várias vezes, acompanhado a viagem dos dois caixotes, e continuavam parados. Mesmo assim, sempre que ouvia o carrinho do carteiro entalar-se nas pedras aqui mesmo na rua, lá levantava o rabo da cadeira e espreitava à janela. Nunca era para aqui.

Até que, enquanto comia uma laranja, tocaram à porta. Por momentos, pensei: é desta! Consegui ouvir: "two boxes for Riquol". Era eu! E eram as minhas caixas, finalmente desencalhadas de Coventry. Não me controlei e soltei um "my boxes!", levando a dona da casa a dar-me um abraço no meio da sala, no que eu tentava que fosse um rápido caminho até à porta, onde até então ainda estava o carteiro encharcado. Enquanto respondia ao abraço, tive tempo para pousar os pés numa enorme tampa de plástico, deixada no chão, desejando apenas chegar à porta.

Agora, sim, vou abri-las.
E sentir um pedacinho da minha casa aqui.


Emigrar

Com as notícias que oiço sobre Portugal, concluo que devo ter apanhado um avião na melhor altura. Não é que deixe de ser afectada, apenas o vivo à distância.