quarta-feira, 18 de maio de 2011

Um dia volto para me vir buscar

Dou comigo de olhos abertos, tão abertos como se tivesse acabado de acordar, em vez de estar a tentar adormecer. Percebo que o tecto do quarto tem uma forma cujo nome desconheço e que a luz  da rua se reflecte directamente nele. Na cortina branca, como se fosse a pálpebra da janela, vejo a forma triangular do telhado da frente, tal e qual como a primeira casa que terei desenhado em papel. Um triângulo por cima de um quadrado e uma chaminé,  que não era mais do que um rectângulo pequenino pousado num dos lados do triângulo. Pela janela da casa da frente só uma vez vi um homem que arranjava cortinas e levantava caixotes.  A senhora que lá vive sozinha, quase cega segundo se diz,  deve manter-se no andar de baixo. A janela até tem uma cortina branca com umas rendas, levemente transparente, mas nunca sei bem se o que vejo é o que existe lá dentro ou se é o meu próprio reflexo. Ao contrário dos reflexos no tecto, reconheço o silêncio das noites. Só é pontuado por grupos de gente de regresso a casa, mais felizes do que quando terão passado de manhã em sentido contrário, no silêncio de uma chávena de café.

Ainda estou com os olhos abertos, mais abertos até, como se tivesse por uns instantes avançado no tempo e sentido o que ainda não senti. É como se antecipasse um vácuo,  aquele que imagino vir a sentir. Uma sensação de eu já não ser o que era antes, mas também de já não ser o que fui aqui. Então talvez reste reconstruir-me. Vou lembrar-me do chiar do portão a abrir. E  o chiar do portão a fechar que durante muito tempo pensei ser o tilintar da buzina de uma bicicleta em velocidade ao saltar do passeio para as pedras. Só mais tarde vim a associar esse som ao fechar do portão que agora já sei ser seguido de um tac-tac-tac. Encontrei-o um dia quando vinha de regresso a casa.  Lembro-me que nesse dia estava cá em casa a actriz que usava dois relógios, a mesma que fez de Kate numa peça de teatro sobre cinco irmãs irlandesas. "One is mine, the other is Kate's", disse. Mas  então, nesse mesmo dia conheci-o na rua. O senhor caminhava no mesmo sentido que eu, uns metros mais à frente. Parou e voltou atrás. 'Poderia explicar-me como é que aquela jovem anda com aqueles sapatos?', perguntou-me, levantando a bengala sem borracha no fundo e apontando para uma jovem  de sapatos-agulha a quem eu tinha dado passagem no estreito passeio liso. Apontei para os meus sapatos rasos e disse-lhe que também não sabia. Ele seguiu o seu caminho e antes que eu abrisse a porta, percebi: era ele quem abria e fechava  o portão, gerando o tac-tac-tac da bengala sem borracha contra o passeio liso. 

Também sei que ao fundo da rua se sente o cheiro das batatas,  são sempre fritas de porta aberta. À porta desse Fish&Chips, dois patos selvagens, pouco voadores, passam os dias chafurdando em duas pocinhas de água que eles próprios criam, ao entornar propositadamente as taças de plástico que alguém lhes enche. Também sei o cheiro dos livros velhos no alfarrabista.  Aliás, há muito tempo que não passo lá, talvez desde que dei ao dono um marcador de livros de Fernando Pessoa, com uma citação traduzida. Lembro-me que lhe dei o envelope com o marcador lá dentro quando o vi a desatar o nó do cartaz rudimentar --  só diz 'Bookshop' escrito à mão -- que  eleata todos os dias à tabuleta  de sentido proibido colocada no início da rua. 

Também conheço a campaínha, sei quando é o carteiro ou quando são visitas. Se é mais curto e rápido é o carteiro do costume, o que empurra o carrinho com velocidade e bebe Irn Bru todos os dias. Se é longo, então é uma das velhinhas de movimentos lentos e vida sossegada. Se toca duas vezes é a neta adolescente. Se toca durante a noite, e seguido de risos, são os que estão nos seus felizes regressos a casa.

Da última vez que dei conta que ainda tinha os olhos abertos foi quando percebi que vou ter de me deixar cá. Mando os livros, levo as malas e um dia volto para me vir cá buscar.


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