sábado, 28 de maio de 2011

Coração à direita, pó e tangerinas



Os oito desenhos em folhas A3 estavam pendurados num quadro. Em cada um deles havia um coração no lado direito do peito. E em cada um deles o interior do corpo humano era diferente. Um papel escrito a computador explicava que naqueles desenhos as crianças tinham desenhado o que achavam ser o corpo humano. Num cartaz ao lado estava o corpo humano a sério, com os nomes de todas as entranhas e ossos. Estávamos as três sentadas em cadeiras de escola, com o rabo a vinte centímetros do chão e os joelhos quase à altura dos ombros. O vento era assustador, a chuva impedia que víssemos para lá de uns duzentos metros. Das janelas da escola primária dava para ver o topo dos arbustos mais frágeis a tocar o chão, os brinquedos perdidos a ir contra os passeios e um tanque cheio até transbordar. Na estrada junto à entrada da escola, no meio do nada, os carros acumulavam-se numa fila. Aqueles que decidiam não esperar davam meia volta e regressavam por onde tinham vindo. O vento de mais de cento e quarenta quilómetros por hora tinha deitado a baixo sete árvores na mesma estrada. Não tínhamos para onde ir, os nossos planos de chegar à ilha de Skye tinham vindo a ser destruídos nas últimas duas horas, em que tentámos em vão encontrar alternativas para as estradas cortadas pelas árvores. Os faróis dos carros em sentido contrário avisavam-nos da impossibilidade de seguir caminho por ali. Entre chuva e vento medonho, abríamos as janelas e percebíamos que por ali também não dava. Sem sítio para onde ir, parámos no primeiro e único slugar fora da estrada. Perceberíamos mais tarde que era uma escola primária, onde os alunos estavam todos à espera do autocarro que não chegaria tão cedo. 

Para além dos desenhos nas paredes, havia um grande caracol vivo dentro de um aquário, um canto para leitura, uma casinha improvisada no meio da sala com um toldo de jardim, um cesto pendurado no tecto com utilidade desconhecida e um canto com jogos de palavras. Deram-nos tangerinas e palitos de bolacha com chocolate. A professora ia colando legendas nos caixotes com materiais, enquanto nos contava mais sobre a vida dela, os alunos, a escola. Contou-nos viver a mais de trinta milhas dali e que todos os alunos moravam a umas cinco milhas da escola, todos em direcções diferentes. O vento continuava assustador, os carros parados em fila. Por instantes olhávamos umas para as outras para termos a certeza de que tudo estava mesmo a acontecer. Por fim, disseram-nos que não iamos conseguir ir longe. A maior árvore levaria uma noite para ser tirada do caminho. 

Uns quinze minutos separaram a sensação de não termos onde dormir da euforia ao espreitar para cada um dos quatro quartos e magníficas salas da casa onde viríamos a ficar uma noite, sem electricidade. Perdido no meio de Stirlingshire, existia um amontoado de casas para alugar, viradas para um lago, rodeado de relvados com ovelhas e vacas. E no meio das pequenas casas, uma enorme casa. A dona, mãe de uma das alunas da escola, nova, com cabelo encharcado pela chuva e as mãos sujas de cortar árvores, ofereceu-nos a casa por um preço mais baixo do que aquele que teríamos pago no nosso hostel em Skye. Veio ter connosco na sala onde comíamos tangerinas. Estendeu-nos a mão cheia de pó, ao que respondi com uma mão peganhenta com sumo de tangerina. Naquele momento, nada interessava. Disse-nos em velocidade que podíamos ficar na casa dela, que pensássemos um bocado e disséssemos se queríamos. Não tinhamos qualquer outra alternativa, aceitámos. E antes que saíssemos da escola e seguíssemos o carro dela, agradecemos a quem nos acolheu por mais de meia hora no meio da maior tempestade dos últimos meses. 

A casa tinha uma espécie de varanda envidraçada, virada para um enorme relvado onde as ovelhas, alheias a qualquer tempestade, comeram erva desde que chegámos até que adormecemos. Esperámos que a electricidade voltasse, o que nunca chegou a acontecer. Comemos as nossas sandes, embrulhados em todos os cobertores das dez camas que a casa tinha, resistindo aos seis graus. A luz do dia durou até às 23h, altura em que percorremos a casa com velinhas pequenas até nos afundarmos nas luxuosas camas. 

O dia seguinte levar-nos-ia até à ilha de Skye, onde as estradas para dois carros têm a largura de um estreito. A chuva foi quase permanente, a temperatura desceu a quatro graus, tivemos granizo, gelo, frio, sol, arco-íris. Voltei a vestir o mesmo que vesti quando nevou em Dezembro, voltei a ter os pés encharcados e meias ensopadas, voltei a ter de usar secador depois de lavar o cabelo, enrolar-me em cachecóis. A ilha de Skye vale pelas paisagens e valeu pela estrada que liga a costa este à costa oeste, cortando a paisagem a meio, mas sem casas, sem nada para lá de um risco no meio de montanhas e vales.

Dos três dias de viagem e dos mil e setenta quilómetros, guardo a intensidade das paisagens e as emoções extremas que mudaram à mesma velocidade a que muda o tempo na Escócia.

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