Passei a poder estar no jardim. 'Agora é como se fosse outra divisão da casa', disse-me ontem a senhora, no dia em que cheguei de novo à Escócia. Como se fosse uma Escócia nova, quente, sem casacos, pés descalços. Desejo que assim continue e que o jardim passe a ser parte da casa. Uma vez mais lembra-me o jardim de casa dos meus avós, onde a cada recanto eu atribuía um significado especial. A árvore do baloiço, o terraço para onde não me deixavam ir por ter muros baixinhos, a terra onde escavava e a pedra com o buraco do guarda-sol que eu utilizava como uma pequena panela, cheia até cima com a água da chuva.
Hoje sentei-me sozinha no jardim. Assustei-me com o susto da pomba gorda que anda sempre por aqui e que levantou voo com enorme dificuldade. Sentei-me numa das duas cadeiras de ferro verde, com uma pequena mesa à frente, redonda, com pequeninos ladrilhos de cores no tampo. Em duas semanas, a macieira passou a ter folhas e as flores estão a caminho. Lembrei-me de como, quando vim para aqui viver, ainda tinha maçãs. Antes que elas caíssem, passadas uma semanas de eu ter chegado, subi a um escadote mal pousado para as apanhar. Meti-as nos bolsos depois de ter enchido o saco e fiz a minha primeira tarte de maçã.
Sete meses depois de cá ter chegado, já não há maçãs, mas as folhas voltaram. Ontem sentei-me com a senhora no jardim, dois copos de vinho branco. Duas etapas bem diferentes da vida: uma atribulada primeira fase e uma tranquila última fase. Como um dia um professor me escreveu: é a difícil e lenta subida da montanha e depois a fácil e rápida descida. Sem que nenhum dos lados da montanha tenha de ser sombrio.
Partilhámos pequenas histórias da subida e da descida. Ela relembra aos setenta e três anos os tempos em que deixou os Estados Unidos, tinha pouco mais de dezassete. 'Quando se volta, é difícil identificarmo-nos com as pessoas que lá deixámos. Nunca ninguém percebe o que vivemos. Continuas a querer voltar para trás?', perguntou-me, enquanto já me dava a resposta que esperava. Olhei para ela. A resposta a esta pergunta depende sempre da fase em que estou. Voltei a sair de casa hoje, cheguei aqui há duas horas. Deitei-me em cima da cama assim que cheguei, de janela aberta, a sentir-me perdida. E, como sempre me acontece, acordei sem saber onde estava. Viria a acontecer o mesmo durante a noite. A dor existe de cada vez que saio de casa, apenas é mais ténue agora. Portanto talvez hoje não seja dia de responder aventureiramente. 'Acho que há duas opções. Uma é não aguentar a distância que passa a existir entre aquilo que era e aquilo que sou. Aí, não resta opção: não voltar atrás. A outra opção é aceitar a distância, engolir todos os momentos, guardá-los e revivê-los sozinha, sem esperar que ninguém os entenda. E então, sim, é possível voltar atrás', disse-lhe. 'Mas isso signfica viveres mais isolada e sozinha', foi a resposta. Sei disso. Ela confessa ter pena de nunca ter voltado a rever ninguém desde que acabou a escola e saiu do país. 'Foi um corte profundo, acabou ali. Depois parti para o Bangladesh, casei-me e vim para aqui. Nunca mais soube de ninguém'. E embora não me tivesse passado sequer essa ideia pela cabeça, dos seus setenta e três anos ela acrescentou: 'Não gosto da ideia do Facebook'. Ri-me e seguimos para uma conversa mais leve até acabarmos o vinho.
Hoje sozinha, sentada na mesma cadeira, pensei em como nunca serei capaz de traduzir exactamente estes instantes. Concluo apenas que embora quase cinquenta anos nos separem, somos uma espécie de reflexo: uma atribulada no início da subida, a outra numa pausa tranquila para reflectir sobre o que se vê lá de cima.
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