terça-feira, 8 de março de 2011

Quanto menos tiveres na vida, mais depressa foges


'Somos conhecidos pelo nosso humor', disse um realizador bósnio, à roda dos trinta e poucos anos, depois de termos visto o documentário que fez. 'Dizia-se que não morreríamos se tivéssemos tabaco e café. Mas a verdade é que no primeiro mês do cerco a Sarajevo não houve piadas'. Contou-nos a primeira piada que ele  ouviu. 'Iam dois amigos a andar numa rua e um sniper disparou acertando-lhe na orelha que caiu uns metros à frente. Em vez de fugir, ele andou à procura da orelha, enquanto que o amigo lhe dizia que fugisse e não desse importância à orelha. 'Não é pela orelha, é pelo cigarro que eu tinha atrás dela', respondeu-lhe'. Durante três horas partilhámos todos o mesmo espaço, um muito pequeno café no centro da capital, preenchido com cadeiras e mesas baixas, belíssimas fotografias nas paredes. A descontracção de quem não se conhece mas que, pela idade e pelo ambiente, sente ter partilhado os últimos anos de vida. A normalidade de bósnios que serão amigos e clientes assíduos, que entram e saem do balcão com cervejas, que nos encomendam pizzas. Sentamo-nos todos, entre cadeiras e almofadas no chão, apagam-se as luzes e durante uma hora vemos um documentário feito por dois irmãos gémeos bósnios que viveram e vivem em Sarajevo. O cheiro a tabaco é intenso, o fumo entranha-se nas roupas e a sombra do fumo vê-se na luz que o projector direcciona para a tela. Uma tela muito improvisada, tudo improvisado, sentimo-nos como se já tivessemos estado juntos. O documentário junta gravações feitas por gente que filmou o seu dia-a-dia durante o cerco à cidade. Videoletters, como ele lhes chama. Pessoas que filmaram as vidas para comprovarem que ainda viviam.  Uma hora de imagens não chocantes, mas emocionalmente profundas, juntando humor e ironia. 'Aprendi que o melhor na vida é não ter nada. Assim foge-se mais depressa. E todo o dinheiro que conseguirem juntar, gastem-no em viagens', dizia um senhor já velho, ironizando sobre a sua vida, rindo-se do que dizia mas, na verdade, reflectindo a realidade.
'Ia numa rua e ouvi alguém gritar. Fui dar com um rapaz com as mãos atadas, pediu-me que o ajudasse a libertar-se. Perguntei-lhe como e ele disse-me que lhe desse com um bastão na cabeça com toda a força que conseguisse. Era a melhor forma de ser livre. Eu agarrei no bastão, bati-lhe na cabeça e ele caiu. Percebi depois que tinha sido um grande escritor', contava um rapaz, sentado numa cadeira no meio da rua e com uma carpete pendurado numa árvore, como pano de fundo.
Terminado o filme, ficámos a conversar no café. Podia ser um café em Lisboa. Mas desta vez não partilhávamos os desejos de viajar ou de conhecer o mundo, partilhávamos uma vontade de estar ali, de perceber o momento presente. Partilhámos opiniões sobre como perceber a guerra que 'parece não ter acabado', as divisões alimentadas todos os dias, a sensação de pouca esperança aliada à vontade de ficar, de discutir, sustentada pelas emoções e recordações que poucos percebem mas que durante anos foram partilhadas por quem viveu em Sarajevo. Como quando ele nos disse que a cada cidade onde vai imagina como seria se a guerra tivesse sido ali. Ou como anda nas ruas e se lembra que, durante o cerco, ninguém sabia a que velocidade andar. 'Se alguém levasse um tiro porque ia devagar, diriam 'ia devagar, estava à espera do quê?'. Se fosse depressa alguém diria 'ele ia a correr, não podia esperar outra coisa'. Por causa disso, nunca andávamos da mesma forma, corríamos e abrandávamos. Assim, se levássemos um tiro, diríamos que era porque tinha de acontecer'.
Regressei ao frio quando abri a porta do café. Percebi que me apaixonei pela história deste país, pelas profundas dificuldades que existem em encontrar soluções. Pelas pessoas, por uma geração nova que carrega uma guerra às costas, que fuma até não poder mais, que lê, que vive o passado no presente. Procurámos um táxi, saímos para ir ao supermercado e, de repente, apeteceu-me ficar por cá. 

1 comentário:

guilherme disse...

O velhote matou o rapaz =O?