quarta-feira, 16 de março de 2011

A máquina de costura

Era como se estivesse em Lisboa. As pessoas olham umas para as outras na rua, senti-me próxima, não estranha. Foi o último dia em Sarajevo e o cansaço da semana inteira de emoções, opiniões e debates encaminhou-nos a todos para a parte antiga da cidade, o bairro turco. Ponto central na cidade, muito perto do nosso hotel, repleto de pequenas lojas e cafés, vivo de manhã à noite. Dia de sol, com a mesma luz que encanta quem visita Lisboa num dia de esplanadas, passeios, conversas leves e caras aquecidas. Fomo-nos todos cruzando nas ruas, entrando e saindo das lojas, partilhando o que comprávamos, até nos termos sentado numa esplanada, chão de pedras redondas, mesas de plástico verdes, numa espécie de pátio interior. Bebemos café ao sol.
Como o cansaço me evade das conversas, dei conta das  lojas que nos rodeavam. Entre elas, uma modista. Um espaço minúsculo com uma montra com quadrados de vidro divididos por madeira. A porta era também de madeira. Cheguei mais perto, só uma senhora lá estava, sentada em frente a uma máquina de costura antiga, com os óculos na ponta do nariz. Entrei, ouvi o som ritmado da agulha e perguntei se podia tirar uma fotografia à máquina de costura. Lembro-me que a minha avó tinha uma em casa, era motivo de curiosidade pois o tampo da mesa virava ao contrário e a máquina desaparecia. Ela encolheu os ombros. ‘Não?’, perguntei-lhe. Voltou a encolher os ombros. Baixei-me e tirei uma foto à máquina de costura. ‘Français?’, ouvi. Disse que sim, levando-a a pedir-me a razão para querer uma fotografia. Expliquei-lhe que a minha avó tinha tido uma máquina daquelas em casa. Num instante ela mudou, sorriu amavelmente, acenou com a cabeça e disse que estivesse à vontade. Perguntou que idade tinha a minha avó e continuou o trabalho dela, fazendo conscientemente parte da fotografia. Mostrei-lhe as fotografias, e ela abanou a cabeça. ‘É assim que vejo como estou a ficar velha’, disse em francês. A conversa foi-se fazendo aos poucos, relembrando palavras à medida que se tornavam necessárias. Entendíamo-nos entre frases cortadas, aprendíamos o sentido das meias palavras. Disse-me ter duas filhas, uma delas estudou gestão na Malásia. Expliquei-lhe que estudava e trabalhava, e o telefone dela tocou. Manteve-se sentada na cadeira, de frente para a máquina de costura antiga de ferro verde. Percebi que tinha estado a coser um blazer castanho. Enquanto ela falava ao telefone, reparei em todo o restante espaço. Um pequeno recanto para experimentar a roupa com uma cortina aberta, um espelho alto numa parede, uma prateleira com livros amontoados, caixas de plástico com linhas de várias cores, um móvel muito pequeno encostado a uma parede com dois napperons de renda e um grande rádio ligado, embora só se ouvisse conversa e não música. Havia ainda um vestido pendurado na parede e uma única flor de pé alto dentro de um copo. No meio da loja estava um aquecedor a gás. Ouvi-a a dizer o que me pareceu ser ‘turista’ e fiquei com a ideia que estaria a falar de mim ao telefone. Nesse mesmo instante, passou-me o telemóvel para a minha mão, pedindo que falasse com a filha. Sem sequer saber em que língua deveria falar, agarrei no telefone e, do outro lado, uma rapariga falou-me em inglês. ‘A minha mãe trabalha aí e disse-me que estavas a tirar fotografias. Pediu-me que lhe enviasses as fotografias, se for possível’. Deu-me o email, que apontei num bocado de papel amarelo, parte de um grande rolo utilizado nas costuras da senhora. A partir desse momento, pousou o blazer castanho, deixou o trabalho e alargou-se a conversa.
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Hesitou por uns momentos antes de se levantar, mas levantou-se, dando dois passos até tirar a carteira. Abriu-a e mostrou-me a fotografia da filha com quem falei, sem dúvida parecida com a mãe, e lamentou não ter uma fotografia da outra filha, sem aprofundar a razão. Mostrou-me o marido numa fotografia onde apareciam os dois lado a lado e ainda uma só com a cara da mãe. Nasceu na Albânia e viveu no Kosovo. Trabalhou numa organização internacional, como economista, onde aprendeu a falar francês com as colegas de trabalho. ‘Entretanto nunca mais falei e perdi o francês’. Veio viver para a Bósnia e Herzegovina, para Grbavica, um bairro em Sarajevo, onde vivia a mãe e onde viriam a estar durante a guerra. Falou lentamente, num esforço para se lembrar das palavras certas, fechando os olhos de cada vez que a memória a impedia de se expressar. Eu também reduzia o meu vocabulário a quase nada, apenas o essencial. Encostou os dois cotovelos na mesa e apoiou a cara nas mãos. ‘Tivemos fome e frio, as minhas filhas tinham seis e oito anos, evitávamos sair de casa’, disse-me sobre o tempo em que viveu a guerra em Sarajevo. ‘Nunca mais voltei a Grbavica, nunca consegui’. Perguntei o que achava da cidade hoje. Sorriu, levou as mãos aos olhos, levantou-se novamente e aproximou-se da prateleira com os livros. Tirou um  e encostou-se a uma mesa  a folheá-lo. Não percebi e continuei a tentar absorver tudo o que envolvia aquele espaço, até ela ter fechado o livro com força e eu ter percebido que era um dicionário bónsio-francês.‘Vie! Ma vie c’est Sarajevo’. E não era preciso dizer mais. Acrescentou no entanto como a situação é difícil, ‘l’économie est morte’, como a esperança de melhoria é nenhuma e como o melhor a fazer é ‘continuar a trabalhar para esquecer os problemas’. Lembrei como parecia tão simpático ter aquela enorme montra, podendo ver as pessoas a passar. ‘Tenho sempre o rádio ligado numa estação croata, é a minha companhia’. Contou-me ainda como a blusa de seda branca na montra tinha mais de sessenta anos, tinha sido apenas usada pela mãe dela. Disse-lhe que voltaria em breve a Sarajevo e que passaria ali. ‘Vejo-a daqui a quatro meses então, é?’. Confirmei e abri a porta para me ir embora, depois de agradecer. Ela disse-me como tinha sido interessante conversarmos e, pela última vez, fechou os olhos para se lembrar de uma palavra. Esperei e, com a intensidade de quem encontra o que procurava, ouvi-a dizer: ‘Merci beaucoup!’.



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