domingo, 16 de janeiro de 2011

terceira chave


depois de esperar uma hora na rua, com o saco das compras impermeável e de padrão malhado, percebi que a porta da rua tem uma terceira chave para uma terceira fechadura. nunca antes usada, em quase quatro meses, mas que hoje estaria fechada. no dia que eu tinha planeado dedicar arduamente à leitura do livro que consegui trazer da biblioteca. acabei por esperar num café, onde adiava entrar há meses. li a revista do financial times e o suplemento de artes, coisa que não teria feito se não tivesse entrado ali. assim como perguntei ao rapaz do balcão se era bom o darjeeling tea. disse-me que não sabia e que eu lhe dissesse no fim. antes da aventura, tinha passado pelo bouquiniste da minha rua - o senhor que é rosado por baixo dos olhos e que sorri sinceramente. entrei, pousei o guarda-chuva. ele estava encharcado, com o seu casaco azul e verde, ao lado de um outro senhor. já nos tinhamos falado desde que eu cheguei, quando nos cruzámos na montra da loja, perguntando-me como tinham sido os meus dias em portugal. agora, fresco de memória, disse para o amigo que eu era portuguesa, o que me fez acenar e sorrir. 'onde o tempo de certeza estará melhor, não é?'. disse-lhe que sim. comentou com o amigo que eu morava ali na rua e que escrevia para uns jornais. 'este meu amigo é advogado', disse-me, acrescentando: "a justiça em portugal deve ser assunto difícil"... riam por pequenas coisas, como a história que ele começou a contar: 'descobri um antigo colega meu da escola, a quem disse que tinha uma livraria e ele disse: 'waw! a bookstore!'. acho que ficou a pensar que eu tenho uma grande livrara.' riram-se os dois, olhando para o espaço de três metros quadrados que no fundo é a dimensão total da sua bookstore. num pequeno intervalo, abstraí-me da conversa enquanto olhava para a prateleira que tem escrito 'travel'. os livros continuam a ser quase os mesmos e apercebo-me de que aqueles que tiro da estante paa folhear são também quase sempre os mesmos. quando apanhei a conversa novamente, riam-se depois do Mr. Bill (assim se chama o bouquiniste) ter dito ao amigo que há já três semanas anda à procura do telemóvel. comprei um livro da estante 'History'. livro esse que me salvaria enquanto esperava no café, até arranjar mentalmente uma solução para a abertura da porta. enfrentei a chuva e, com a ajuda do senhor mais simpático da rua (até mesmo antes do Mr. Bill), percebi que a senhora hoje tinha usado uma terceira chave, cuja utilidade até hoje eu desconhecia.

Foto: Sara Osório

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