terça-feira, 11 de janeiro de 2011

não te vou seguir

A poucas horas do meu primeiro exame, com uma estranha sensação de total ausência de nervosismo, decidi ir comprar duas canetas. Depois de as comprar, pensei em regressar às minhas visitas aos alfarrabistas. Esteve um fabuloso dia de sol, que por vezes até me obrigou a fechar os olhos. E a neve derreteu toda entre a noite de ontem e a manhã de hoje. Virei para a Bell Street, enfrentei o sol mesmo nos olhos e segui o caminho de mãos nos bolsos do casaco, porque não tinha trazido as luvas. Por momentos imaginei cruzar-me com um colega que me perguntasse se eu sabia que íamos ter exame dentro de uma hora e meia.

Entrei no Barnardo's bookshop. Folheei uns livros e encontrei um a £2.50. Decidi trazê-lo. Enquanto procurava outros livros, apercebia-me como lá bem no fundo começo a sentir uma qualquer empatia pelo sotaque escocês. O dono da livraria falava com uma senhora. Um sotaque carregado, com uma personalidade muito vincada e uma entoação feita por pequenos arranques e elevações da voz. Engordando os erres e substituindo todos os sons 'ei' por 'ê'. Paguei, esperei por um saco, mas lembrei-me que não era necessário.

Saí com o livro na mão e como o passeio não tem grandes variações, nem qualquer tipo de obstáculo menos simpático, optei por ler o prefácio a caminho de casa. A meio do caminho, já sem o sol a bater nas costas, percebo que ainda ali estava o mesmo rapaz que um tempo antes tinha visto a tentar vender alguma coisa, fazendo parar as pessoas na rua. Adoptei a minha atitude de 'não, obrigada' - infelizmente como defesa mais do que como desprezo - mas algo me fez parar quando ele me disse 'não te vou seguir'. Não só parei como voltei atrás.

Perguntou-me que livro estava a ler. Como não só não tinha pedido saco como também vinha a ler o livro, disse-lhe qual era. Perguntou-me porquê. Expliquei-lhe. Lembrou-se que estava em St Andrews, e comentou para ele próprio que esta universidade tinha um curso isso. Num segundo, esqueceu a razão pela qual estava no meio da rua. Tinha sido soldado do exército britânico e esteve seis meses em Cabul. A conversa iniciou-se de forma simples, prolongou-se entre partilhas de opiniões, a minha insistente e incompreensível repetição da palavra 'construction', terminando em descrições sobre a diferença entre o mundo em termos reais e o mundo em termos 'construídos'.

Teria trinta e poucos anos, conversador, simpático. Um gorro e umas luvas, para além do papel forrado por plástico sobre a associação de recuperação de animais selvagens em extinção que manteve o tempo todo na mão. Pendurado no casaco tinha um cartão com a identificação e uma fotografia, mas colocado de forma a eu nunca a ter conseguido ler. Da apresentação da fundação para salvar os animais percebi pouco. Queria que eu me tornasse membro e doasse dinheiro mensalmente. Expliquei-lhe da forma mais simples que isso era impossível.

Ele não questionou, como se no fundo aquele discurso tivesse deixado de fazer sentido depois da anterior conversa. Tirou a luva da mão direita para que nos despedíssemos. Desejou-me uma boa leitura, agradeceu-me a conversa, e voltou a desejar uma boa leitura. Agradecemos várias vezes e segui caminho. Meia hora depois estava a fazer o meu primeiro exame.

Já este livro terá sempre a sua história por dentro e esta por fora.





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