segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Só porque atravessei a estrada

Um dia a comer chocolates, ao ponto de me enjoar dentro de um táxi. Chegava à última entrevista, depois de visitar recantos escondidos, de provar iguarias, de enfrentar o frio. Estivemos sentados nas únicas três cadeiras de ferro forjado branco, dentro da loja, com uma mesa entre nós - exactamente a mesma mesa e cadeiras, embora essas verdes, que a minha avó tinha no terraço da casa dela. Conversámos. Primeiro formalmente. Depois de ultrapassadas as barreiras, a conversa fluiu abertamente. E por baixo da minha cadeira jazia um saquinho de plástico com um nó, que tinha trazido comigo. O saco tinha uma história. Passei num mercado de velharias, com lojinhas de três metros quadrados repletas de antiguidades. Entrei numa para pagar um carrinho de bombeiros antigo que levava ao meu irmão. Dei as duas libras ao velhinho da loja, que me disse ser a 17ª loja que tem nos últimos 35 anos. ''Tenho clientes que me ligam do Japão, antes de virem a Londres, e me dizem o que querem. Vou aos mercados e feiras e tento encontrar o que eles me pedem, antes que eles cá venham''. Aceitei um saco de plástico para levar o carrinho, e ele tirou um saco bem usado, com um buraco pequeno no fundo. O tipo de coisa que o meu avô também desencantaria da garagem. Já a caminho da última entrevista, foi esse o saco que utilizei para meter as caixas das lojas anteriores.


Tinha chegado ao fim do dia e regressei ao meu quarto, num primeiro piso do hotel, a última porta do corredor. A janela, que fechava mal, dava para a rua principal, com o tipo de movimento e ruído de que gosto. O aquecedor funcionava, a água quente também. Só o secador é que tinha vida própria e decidia quando devia trabalhar e quando deveria parar. Saí do hotel de cabelo molhado, só para comer alguma coisa no restaurante mais perto que encontrasse. Um panfleto pousado na mesa do meu quarto indicava que num italiano ali perto tinhamos direito a dez por cento de desconto. Desci as escadas alcatifadas do hotel. Não eram propriamente umas escadas luxuosamente alcatifadas, em tons vermelho escuro ou verde seco, onde os sapatos não fazem barulho. Eram antes uma escadas com alcatifa escura e com padrões infernais, gasta no centro de cada degrau e tão descolada do chão que cada degrau parecia prolongar-se três centímetros à frente do que era na verdade.

Chegada à rua, dirigi-me ao primeiro restaurante italiano, exactamente do outro lado da rua. Percebi que não era ali que teria direito a desconto, mas decidi entrar. O dono recebeu-me em italiano e sentou-me numa mesa que considerou ser a melhor do restaurante embora não houvesse diferença nenhuma em relação às restantes. Do meu lado esquerdo tinha dois homens. Um de cabeça rapada, óculos e camisola vermelha de capuz, sentado em frente a um rapazola mais novo, que evitava olhar-me de frente. Do meu lado direito tive por momentos um homem que comeu toda uma pizza de tamanho médio a caminhar para familiar, enquanto eu apreendia quem estava à minha volta. Rapidamente pediu a conta e foi-se embora, dando lugar a outro senhor de fato e gravata cor-de-rosa, que a certo momento tirou a gravata e fez dela um rolinho perfeito, que pousou em frente a si próprio. Obviamente a gravata desenrolou-se toda pela mesa fora.

Mas antes que tivesse tempo para ver algo mais, o empregado estava à minha frente para aceitar o meu pedido. Achei que conseguiria dizer 'lasanha vegetariana' sem precisar de entoar um som italiano. Disse-o em português. E recebi de troca a pergunta, em inglês, sobre de que país eu era. 'Então podemos falar em português', voltou a dizer. Num instante aquilo que era um jantar sem qualquer promessa, num impessoal restaurante italiano ao fim de um dia de correria, transformou-se numa boa surpresa. Partilhámos um resumo das nossas vidas em três minutos, numa sensação de isolamento à nossa volta, pois aquela língua em que nos entendíamos tão bem era desconhecida para quem nos rodeava. Voltei a pedir lasanha vegetariana em português, pude perguntar se a limonada era mesmo limonada. E o sumo de laranja? 'É dos azedos. Não sei se gostas', disse-me, fazendo-me pensar em como habitualmente designo esse sumo como 'sumo de avião' e não 'sumo de laranja azedo'. Em cada intervalo de espera, havia sempre um minuto ou dois para saber um bocadinho mais sobre a coincidência de dois caminhos se cruzarem inesperadamente. Estava em Londres há um mês, arranjou trabalho no segundo dia depois de ter ido ali jantar e ter percebido que o dono era português. O tal dono que fala em italiano quando as pessoas entram no restaurante (vá-se lá duvidar que um português seja bom para o negócio...). Explicou-me que tinha estado a trabalhar na Alemanha nos últimos quatro ou cinco anos e que, antes disso, tinha trabalhado no Algarve. Voltar a Portugal? 'Só daqui a uns dez anos. Mas quero voltar'. Perguntei-lhe se o que recebia ali era decente e disse-me que sim. Um mês à experiência a ganhar um bocadinho menos, mas depois do primeiro mês 'ganha-se bem'. 'Trabalho todos os dias, servimos almoços e jantares e estamos abertos até às 23h'. Encolheu um ombro. Fez-me lembrar a conversa que tinha tido com as portuguesas no Luxemburgo: sim, acontece trabalhar mais fora de Portugal, mas ganha-se para isso.


Quando o dono do restaurante percebeu que partilhávamos as mesmas origens, fez-me sentir no tão confortável e familiar ambiente de uma tasca em Lisboa. 'A menina está bem?', perguntava-me cada vez que passava na minha mesa. Estava bem. Retardei a minha fuga, bebendo um chá aos poucos. Os dois empregados e o dono entendiam-se em português, que para algumas das pessoas passaria por italiano. As asneiras, os sotaques nortenhos, 'ó joão, 'tás a dormir?'. Ri-me sozinha e senti-me orgulhosa do que temos: fazer as pessoas sentirem-se em família é algo muito nosso. Saí do restaurante e percebi que o restaurante italiano onde teria desconto de dez por cento era exactamente do outro lado, junto à porta do hotel. Pelos vistos, estava destinada a conhecer o quarto português em Londres, vinte e quatro horas depois de ter chegado. E tudo porque, no fundo, atravessei a estrada.

2 comentários:

Anónimo disse...

Lovely! Senti a mesma familiaridade em Bruxelas, quando os meus vizinhos do nº 53, Rue Antoine Labarre, eram proprietários de um café chamado Sport ALMA e Benfica!

Eram muito antipáticos, mas os palavrões, a bola de futebol contra a parede do prédio aos Domingos às 10h, e o cheiro do bitoque fizeram-me companhia durante 6 longos meses!

Raquel Albuquerque disse...

é isso. é quando a falta de portugal nos faz gostar de portugal :) e cada vez mais acho que estás a precisar de regressar à bélgica, voltar a comer uma sandes na loja da esquina ao pé do manneken pis, ir visitar os portugueses do café, comer uma bolacha na fonte de chocolate.