não tive um domingo de páscoa. tive um domingo. quase como qualquer outro, com a diferença de saber que para muitos é um dia de família, de almoços e encontros. desta vez, optei então por não fazer parte de nenhuma páscoa, agradecendo o convite da minha senhoria, que sugeriu que eu me juntasse ao spaghetti and meat balls da páscoa da família dela, que foi também o aniversário da neta mais nova. a mesma miúda com quem passei a tarde há dois dias. a mesma que me desenhou uma fada portuguesa, ou seja, 'with dark hair, red nails and a butterfly on her hat'. a mesma que com um gigante cubo de Rubik na mão me disse: 'adorava que isto tivesse um botão mágico para pôr as peças em ordem', o que me fez pensar como é que aos sete anos já sonhamos com botões mágicos para nos resolverem os problemas. não quis, no entanto, intrometer-me no almoço de família, pois fui eu quem escolheu sair de casa um ano e, por consequência, estar longe da família. tenho de lidar com isso.
passei então parte do dia sentada à frente do computador, na biblioteca, no meio de meninas fashion que passam o tempo a comer cenouras enquanto trabalham. imagino a situação: uma delas, a mais popular de todas as outras, a mais magra e a que decide as modas trouxe uma cenoura. as outras passaram todas a trazer cenouras para comerem enquanto trabalham, provavelmente sofrendo de dores de cabeça com a fome que as cenouras lhes fazem passar. para além das cenouras, passam pela biblioteca as calças rosadas, verdes ou vermelhas dos meninos do golfe, com sapato de berloque. observados todos os detalhes, consegui acabar o meu ensaio sobre se a china está ou não a desafiar o modelo ocidental de reconstrução em áfrica. sem mais capacidade para perceber se as cinco mil palavras que escrevi em três dias faziam ou não sentido, imprimi o trabalho e senti-me livre por dois ou três dias.
comprei um caixa de cuscuz no supermercado, que me dá para três refeições, trouxe um garfo de plástico gratuito que encontrei ao pé dos iogurtes e fui para a praia tentar que o meu domingo se tornasse um dia diferente. uma das praias de saint andrews consegue estar ao nível de muitas em portugal. um extenso areal, contornado por dunas e por uma floresta bem ao fundo. o mar tanto recua que deixa à vista metros e metros de rochas escorregadias, criando pequenas piscinas e lagos. percebi que por mais que as pesssoas avancem no mar, a água lhes chega sempre aos joelhos, com ondas de vinte centímetros. sentei-me perto das rochas, dando conta do quão pontilhada estava a praia com centenas de pessoas, cães, aventureiros dentro de água, miúdos de galochas nas poças, chineses a tirar fotografias nas rochas e todas as gaivotas e corvos incomodados por uma presença tão intensa de humanos nas zonas que costumam ser apenas dos pássaros. já não estava o sol que tinha estado de manhã e o céu tornou-se cinzento, mas não estava nem vento nem frio. descalcei-me, percebendo que esse acto passou a simbolizar para mim uma sensação de tremenda liberdade. comi a minha porção de cuscuz, desembuchando-me com a minha garrafa de água, que tinha enchido no chafariz da biblioteca. desde há um tempo que ando com uma garrafa que trouxe de portugal como se, de alguma forma, me fizesse sentir suficientemente longe e simultaneamente perto.
antes de agarrar num livro, dei conta de um surfista que se aventurou durante trinta minutos em ondas de vinte centímetros. quando o vi a avançar pelas rochas, equipado e decidido, com a sua prancha de surf, pensei que só poderia estar a brincar. estaria ele mesmo a pensar que valeria a pena carregar com uma prancha daquele tamanho para um mar onde, simplesmente, não havia ondas? ele lá foi. o filho da namorada, com uns cinco anos, sentou-se ao meu lado, com um capuz na cabeça por cima de um boné azul. com voz em surdina o miúdo chamava o Jack e acenava, ao ponto de me fazer pena e lhe tentar explicar que talvez o Jack não o estivesse a ver. trinta minutos depois de chafurdar na água com a sua prancha, o Jack voltou a enfrentar as rochas para regozijo do pequeno que finalmente recebeu um aceno do seu herói.
duas horas e três capítulos depois, o frio era demasiado. mesmo assim quatro adolescentes branquinhos aventuraram-se nas águas. o mais gordinho de todos eles era o que corria mais depressa contra as pequenas ondas, delirante. os franzinos deixavam-se para trás.
regressei a casa e deparei-me com dois coelhos de chocolate na minha mesa, 'a mãe e o filho', assim como um minúsculo pintainho. e um papel, escrito pela menina dos botões mágicos, a agradecer a prenda que lhe dei. e assim se passa o meu domingo, a beber um copo de vinho tinho, 'do bom e caro' como me disseram. e num copo de cristal. ou não seja hoje domingo de páscoa.