Há momentos em que páro e penso como é que um dia irei recordar estes sítios. Acontece-me isso quando vou a andar numa das ruas, onde me cruzo sempre com gente diferente, não fosse a cidade ter nove mil estudantes. Ruas onde não passam carros, apenas pessoas. Cada uma à sua velocidade, carregando livros, sacos, sem nada nas mãos, só com um café, ou puxando carrinhos de mão. É que nessa rua há um dos - diz-se - melhores restaurantes indianos da cidade. Nunca o experimentei, pois o preço de uma refeição dá para três dias de supermercado. Dos restaurantes só conheço os empregados que fumam, é com eles que me cruzo às portas, encostados contra as paredes se estiver a chover. Já tentei, mas não há hábito de se cumprimentarem as pessoas às portas só porque já nos cruzámos no mesmo sítio várias vezes. Apenas se partilha um olhar de reconhecimento: 'estavas aí há bocado', 'esta já passou por aqui hoje'. Outros não fumam à porta mas empurram carrinhos de mão, que encaminham pelas portas das traseiras para as cozinhas. Lá vão os carros a saltar pelos paralelepípedos velhos de pedra, como acontece com o carrinho do carteiro. Sigo o meu caminho, umas vezes pelas pedras desencontradas, outras vezes pelos estreitos passeios lisos, junto à entrada nas casas. O dia em que parei para pensar que voltaria a lembrar-me daquela rua foi quando vi um enorme gato gordo, castanho claro, a percorrer o seu caminho no passeio liso. Vinha lento, bamboleando-se e ocupando o espaço que eu tencionava ocupar até ao fim da rua. Era o gato mais gordo que eu tinha visto, embora fosse a versão real do gato da televisão. Senti-me obrigada a afastar-me do seu caminho, assim como na cidade somos obrigados a alterar a nossa trajectória por causa dos corvos.
Nessa rua talvez exista um espaço de três metros entre as casas da esquerda e as casas da direita. E pendurado na parede, na esquina da rua, está um relógio antigo. A uma certa hora do dia, quando há sol, é exactamente ali que bate.
Hoje, quando saí da biblioteca, tive a mesma sensação: um dia vou lembrar-me disto. É como se saísse de mim e fotografasse o momento, mas com emoções, cheiros, sensações. Pouco passava das seis, trazia comigo dois livros, um computador pequeno dentro de uma sacola laranja que saiu numa revista de informática comprada pelo meu irmão, um caderno que comprei no pingo doce e o casaco apertado até cima. Ao fim do dia já era o casaco preto que eu trazia, pois os únicos dois botões do casaco que vesti de manhã caíram. Saí pela porta da entrada, pois já cheguei ao estatuto de poder quebrar as regras que cumpria quando cheguei. Só a porta da entrada abre automaticamente, a da saída implica ter uma mão livre ou ir de ombro contra a porta para a abrir. Assim que cheguei cá fora, já estava escuro e dei conta da luz focando directamente a torre da igreja. O relógio - talvez seja esse que oiço tocar de hora em hora em casa, antes de adormecer - estava iluminado por uma luz azul. E como o céu até estava limpo, a bola do relógio e a bola da lua estavam à mesma altura. Vim o resto do caminho a pensar se realmente recordo hoje outros momentos em que isto me tenha acontecido. E lembro-me de ir a caminho de casa nas madrugadas belgas, em Louvain-la-Neuve, na lentidão de quem sobe uma rua íngreme (parecia sempre mais íngreme ao fim da noite). Numa dessas madrugadas soube que as três estrelas em linha, que via sempre no regresso a casa, tinham um nome. Lembro-me de momento em que pensei: 'tens de te lembrar disto um dia mais tarde'. E a verdade é que não só me lembro do momento. Ainda o sinto: o cansaço, os ouvidos tapados pela música alta, a confusão na cabeça de uma noite de conversas, emoções, encontros e desencontros, a minha cama a uma distância cada vez mais curta. E afinal talvez seja mesmo bom ir parando de vez em quando para pensar que um dia tenho de me lembrar destes momentos. É como se nesse instante os embrulhasse para os voltar a viver mais tarde.
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