quarta-feira, 8 de junho de 2011

A última linha de Cascos

É como os segundos depois de terminar a última linha de um livro. O mundo suspende-se nos instantes em que é digerido o último fôlego, as últimas impressões. Há uma sensação de estar perdida por não haver mais a seguir. Acabou. Antes de conseguir fechar o livro e pousá-lo, mantenho sempre a página aberta por mais um tempo, agarrando a sensação por mais uns minutos, fugindo de o ter de fechar e seguir. Nesses instantes, nunca releio essa linha, nem as anteriores. Não gosto de dobrar histórias, de sentir que me faltaram pormenores, de que afinal não foi bem como tinha ficado a pensar que era. Foi o que li. Resta-me olhar para o espaço em branco, antes de realmente o fechar e de tentar em vão devolvê-lo à sua forma original, com a contracapa já mais próxima da última página.
Estes segundos são o mesmo que estes últimos dias. Uma espécie de digestão dos últimos fôlegos. Da última festa, vim com todas as promessas de um dia nos encontrarmos sabemos lá nós onde, com os desejos de irmos juntos à Índia, de trabalharmos na Indonésia, de escrever a partir do Congo. Despedi-me de quem parte para o Afeganistão ou para o Bangladesh. Mas este é também o dia em que conscientemente esvaziei as minhas gavetas. Sei agora que me vou lembrar de o ter feito, vou lembrar-me que ter posto estes meses em caixas. Falta-me  tocar às portas de quem fez parte deste tempo, deixar os últimos abraços depois dos apertos de mãos. E fica-me a faltar uma só despedida: da senhora que me deixou em desespero em tantos momentos, que me obrigou a respirar fundo, a mesma com quem vi o Black Swan enquanto comia pipocas tamanho kid, que me ensinou o nome das plantas em inglês, que me perguntava as mesmas coisas várias vezes, que me contava as mesmas histórias várias vezes, a  mesma que me pediu que a ensinasse a utilizar um telemóvel, a encomendar um livro na Amazon, a levar o ipod no comboio para poder ouvir música, a mesma que me ensinou a fazer brownies, que me tentou convencer que é possível conseguir dinheiro se o pedirmos insistentemente. A mesma que me abraçou quando cheguei em setembro sem ter a certeza que ela existia, a mesma que comprou o jornal todos os dias durante oito meses para eu poder estar a par das notícias, que me trouxe copos de cristal com vinho chileno e sul-africano, a que me dobrou a roupa porque não tinha nada para fazer ou que deixou meia quiche para o meu jantar no exacto dia em que não teria paciência para comer mais do que pão.
Agarrados os minutos, resta-me escrever a última linha, fechar o livro, e moldar-me - provavelmente em vão - para me devolver ao que era. Com a contracapa colada à última página, assim se chega ao fim.

Há mais cobardes em ser iludidos, do que em ir para a guerra.
Agustina Bessa-Luís

Mr. Bill

Adiava a prometida despedida do alfarrabista, o senhor de camisola de malha por cima de uma camisa de flanela com quadrados. Mas de repente receei já não o ver mais. Ele surgirá sempre aos meus olhos com as suas rosetas vermelho-vivo, cor que se alarga para lá das bochechas quando se envergonha. Até isso temos em comum. Entrei para me despedir, tal como tinha entrado há uns meses atrás para conhecer pela primeira vez a book shop da rua. Estava só ele, no seu cantinho, só lhe vejo um bocadinho do já pouco cabelo alourado. 'Como prometido, aqui estou para me despedir'. E ele levantou-se, já com o vermelho alastrado, perguntou-me pelos meus últimos dias. Respondi-lhe e estendeu-me um postal antigo. Um dos postais perdidos que durante oito meses eu vi dentro dos caixotes, pequeninos, ordenados por países, com histórias que nunca chegaram ao destino, com elogios e  notícias que nunca chegaram a ser ouvidos. Nunca comprei nenhum. E no último dia antes de partir, era exactamente isso que ele me estava a dar. Dentro de uma capinha de plástico. 'É a Market Street que conheces, mas há muitos anos atrás', disse-me.  Virou o postal para me mostrar que tinha já posto o cartão com os contactos da loja, o resto do postal estava em branco. Já não branco de cor, mas por não ter nada escrito. Engoli  em seco, o mais forte que consegui, tentando nem pensar. Trocámos umas palavras e saí. Quando desviei o cartão com os contactos dele, percebi que  afinal tapava uma frase, escrita a lápis no postal: 'Best wishes for the future, Bill'.

terça-feira, 7 de junho de 2011

E o que aprendi em oito meses

A reviver inesperadamente grande parte da minha infância: instantes e episódios dos quais nunca me tinha lembrado, que surgiram aos pedaços, sem sentido. O jardim, as flores, os pássaros; beber chá no jardim, descobrir um ninho num arbusto,  ter a avó que há anos deixei de ter. Percebi que vale a pena mudar, também percebi que é possível que doa mais do que se imagina.
Aprendi a querer ainda menos, a comprar menos, a ver e a imaginar mais. Apercebi-me de que cozinhar cuscuz é barato. Conheci a salada de pepino, presente na minha ementa até há duas semanas atrás, até a coincidência me ter deixado intoxicada e me ter levado a pensar em desespero e isolamento que estivesse a morrer. Lidei com o desespero, respirando fundo e sentando-me no banco de madeira do jardim a ler On Violence da Hannah Arendt, começando pelo parágrafo - 'If you ask a member of this  [younger] generation two simple questions: 'How do you wish the world to be in fifty years?' and 'What do you want your life to be like five years from now?', the answers are quite often preceded by ... 'Provided I am still alive'.
Aprendi a comprar laranjas nos mercados de todas as novas cidades que visito e sentar-me num banco a comê-las, enquanto observo quem passa. Apreendi a Escócia, os hábitos, as opiniões, o sotaque, os comboios e autocarros, as estradas, a condução à esquerda. Aprendi a não me sentar nos bancos centrais dos aviões quando viajo sozinha, pois a única vez que o fiz fiquei entalada por dois bêbados. Aprendi a carregar malas de trinta quilos sozinha, por vezes sem uma roda. Aprendi que é especial estudar numa faculdade onde existem todas as condições, mesmo que rodeada por um ambiente medieval. Percebi que o tempo pode mudar em dois minutos e vi as mais inacreditáveis paisagens. Vi também os meus pés azuis, depois do sangue ter desaparecido quando os dezasseis graus negativos o exigiam. 
Aprendi como existiram e ainda existem jornalistas a sério na Bósnia e Herzegovina (BeH). Como existe uma modista que mudou um dia da minha vida em Sarajevo. Apaixonei-me pela desorganização da cidade. E não só: percebi como os jovens bósnios são fruto de uma das mais interessantes misturas de emoções, revoltas, limitações e aspirações. 
Percebi que os livros que consegui ler, para lá dos da faculdade, estiveram sempre ligados a histórias de gente fora do país onde nasceu. Aprendi a acordar ao som das gaivotas, a conviver com uma toupeira-bebé no jardim e a não reutilizar as saquetas de chá. Consegui fazer quatro ensaios, três exames, duas apresentações orais, escrever sobre as favelas no Brasil, a China em África, a revolta no Iémen quando ainda só estava a começar, os jornalistas na BeH, a reconciliação em Timor-Leste, a verdade em El Salvador, a gestão superficial de Caxemira, as injustiças no Afeganistão. Aprendi a reconhecer portugueses pelo sotaque em inglês e a saber que, por mal que nos conheçamos, havemos de nos juntar a comer bacalhau.
Aprendi a visitar alfarrabistas e a reconhecer os caixotes de cartão com os melhores livros.  Percebi que é possível viver no meio do nada, no norte da Escócia, como me ensinou um casal de escultores americanos, rodeados por um lago, um moinho antigo, esculturas e uma garagem com tantos frascos como o meu avô tinha na dele. Também percebi que o meu avô me marcou, assim como ter ouvido as vozes de quem viveu a guerra em Sarajevo. 
Aprendi que é possível ter amigos com quem partilho a vontade de não ficar, de ir e de querer, de sentir. Com quem partilho, ainda antes de saber, os meus receios, as mesmas dúvidas e as mesmas certezas. Vivi as conversas de horas e horas, de garrafa de vinho, de inglês contorcido, de regresso a casa em linha pouco recta. Partilhei histórias que nunca ninguém teve interesse em ouvir. Ouvi histórias que nunca tinham sido contadas.
Enganei-me, errei e arrependi-me muitas vezes. Desejei voltar para casa, desejei que o tempo passasse depressa e questionei ter vindo. Congratulei-me por ter vindo e desejei que o tempo tivesse passado mais devagar.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Uma semana: antes e depois

Agora que estou a uma semana de deixar isto, voltei atrás ao dia 30 de Setembro. Na altura, no mesmo sítio onde estou hoje, escrevia sobre a minha primeira semana: 

E passou a primeira semana. Num ápice, como se em tudo o que é novo houvesse já uma sensação de familiaridade. Não deixa de ser estranho. Embora tudo me fosse absolutamente desconhecido desde o primeiro minuto, nada doeu. Ou quase nada. Como se me tivesse vindo a preparar para tudo isto nos últimos anos. E de forma muito eficaz, concluo agora. Como se tivesse estado encostada a uma porta fechada, imaginando o que poderia estar do outro lado. 30 de Setembro de 2010
 
Há dois dias atrás sonhei que estava em Portugal, já em casa, com as minhas malas, e que não me lembrava de nada dos meus últimos dias aqui. Não me lembrava sequer de ter tirado a roupa das gavetas. Culpei-me e lamentei-me no desespero de já tudo ter acabado. Quando acordei, senti o alívio não só de afinal ainda cá estar, como de ter percebido a tempo que preciso de viver cada segundo dos últimos dias. E de conseguir recordar um dia o  momento em que esvaziei as gavetas.