A reviver inesperadamente grande parte da minha infância: instantes e episódios dos quais nunca me tinha lembrado, que surgiram aos pedaços, sem sentido. O jardim, as flores, os pássaros; beber chá no jardim, descobrir um ninho num arbusto, ter a avó que há anos deixei de ter. Percebi que vale a pena mudar, também percebi que é possível que doa mais do que se imagina.
Aprendi a querer ainda menos, a comprar menos, a ver e a imaginar mais. Apercebi-me de que cozinhar cuscuz é barato. Conheci a salada de pepino, presente na minha ementa até há duas semanas atrás, até a coincidência me ter deixado intoxicada e me ter levado a pensar em desespero e isolamento que estivesse a morrer. Lidei com o desespero, respirando fundo e sentando-me no banco de madeira do jardim a ler On Violence da Hannah Arendt, começando pelo parágrafo - 'If you ask a member of this [younger] generation two simple questions: 'How do you wish the world to be in fifty years?' and 'What do you want your life to be like five years from now?', the answers are quite often preceded by ... 'Provided I am still alive'.
Aprendi a comprar laranjas nos mercados de todas as novas cidades que visito e sentar-me num banco a comê-las, enquanto observo quem passa. Apreendi a Escócia, os hábitos, as opiniões, o sotaque, os comboios e autocarros, as estradas, a condução à esquerda. Aprendi a não me sentar nos bancos centrais dos aviões quando viajo sozinha, pois a única vez que o fiz fiquei entalada por dois bêbados. Aprendi a carregar malas de trinta quilos sozinha, por vezes sem uma roda. Aprendi que é especial estudar numa faculdade onde existem todas as condições, mesmo que rodeada por um ambiente medieval. Percebi que o tempo pode mudar em dois minutos e vi as mais inacreditáveis paisagens. Vi também os meus pés azuis, depois do sangue ter desaparecido quando os dezasseis graus negativos o exigiam.
Aprendi como existiram e ainda existem jornalistas a sério na Bósnia e Herzegovina (BeH). Como existe uma modista que mudou um dia da minha vida em Sarajevo. Apaixonei-me pela desorganização da cidade. E não só: percebi como os jovens bósnios são fruto de uma das mais interessantes misturas de emoções, revoltas, limitações e aspirações.
Percebi que os livros que consegui ler, para lá dos da faculdade, estiveram sempre ligados a histórias de gente fora do país onde nasceu. Aprendi a acordar ao som das gaivotas, a conviver com uma toupeira-bebé no jardim e a não reutilizar as saquetas de chá. Consegui fazer quatro ensaios, três exames, duas apresentações orais, escrever sobre as favelas no Brasil, a China em África, a revolta no Iémen quando ainda só estava a começar, os jornalistas na BeH, a reconciliação em Timor-Leste, a verdade em El Salvador, a gestão superficial de Caxemira, as injustiças no Afeganistão. Aprendi a reconhecer portugueses pelo sotaque em inglês e a saber que, por mal que nos conheçamos, havemos de nos juntar a comer bacalhau.
Aprendi a visitar alfarrabistas e a reconhecer os caixotes de cartão com os melhores livros. Percebi que é possível viver no meio do nada, no norte da Escócia, como me ensinou um casal de escultores americanos, rodeados por um lago, um moinho antigo, esculturas e uma garagem com tantos frascos como o meu avô tinha na dele. Também percebi que o meu avô me marcou, assim como ter ouvido as vozes de quem viveu a guerra em Sarajevo.
Aprendi que é possível ter amigos com quem partilho a vontade de não ficar, de ir e de querer, de sentir. Com quem partilho, ainda antes de saber, os meus receios, as mesmas dúvidas e as mesmas certezas. Vivi as conversas de horas e horas, de garrafa de vinho, de inglês contorcido, de regresso a casa em linha pouco recta. Partilhei histórias que nunca ninguém teve interesse em ouvir. Ouvi histórias que nunca tinham sido contadas.
Enganei-me, errei e arrependi-me muitas vezes. Desejei voltar para casa, desejei que o tempo passasse depressa e questionei ter vindo. Congratulei-me por ter vindo e desejei que o tempo tivesse passado mais devagar.